sexta-feira, 2 de janeiro de 2004

Teoria da conspiração

Uns dias antes de 2003 terminar, previ aqui que o processo Casa Pia iria acabar da pior forma possível e que o descrédito da Justiça ameaçava pôr decisivamente em causa a confiança dos cidadãos no Estado de direito. Nunca imaginei, porém, que as coisas atingissem um tal ponto de disparate, irresponsabilidade e eventual demência, como se comprova com o episódio das cartas anónimas incluídas no processo. 2004 anuncia-se, de facto, como um ano terrivelmente fatídico para a Justiça portuguesa.

A decisão do Ministério Público de divulgar cartas anónimas visando a honorabilidade Jorge Sampaio e António Vitorino não é certamente inocente, a não ser que se presuma que o procurador João Guerra personifica um caso de índole psiquiátrica e que o Procurador-Geral da República se considera irresponsável para gerir um asilo de alienados. Logo, restam apenas três objectivos: o de tornar absolutamente credível a teoria da cabala contra o Partido Socialista (quem é que falta apontar como suspeito de pedofilia entre os chamados notáveis do PS?); o de descredibilizar completamente os fundamentos do próprio processo de pedofilia e impedir que se apure a verdade e se faça justiça; finalmente, o de destruir de uma vez por todas a confiança dos cidadãos no sistema de Justiça e fazer implodir o próprio sistema.

Se o procurador Guerra não ensandeceu - ou não está ensandecido desde há muito - e se o Procurador Geral da República não é uma patética figura de opereta, então é porque querem transformar este caso numa verdadeira bomba demolidora da Justiça portuguesa. Tal como diriam os adeptos da teoria da conspiração, nunca se viu, nem no mais recôndito país do Terceiro Mundo, uma situação em que os acusadores públicos aparecem como aliados objectivos perfeitos dos acusados dos crimes (e, neste caso, concretamente, dos verdadeiros pedófilos).

O episódio das cartas anónimas não é, de todo, um mero acidente burocrático (embora monstruoso e intolerável enquanto tal). Se o relacionarmos com todos os outros acidentes anteriores - e a inexistência de qualquer investigação digna desse nome, a partir dos depoimentos das testemunhas e acusadores - é imperioso concluir que a Justiça portuguesa bateu no fundo. E um país sem Justiça é um país onde não vigora o Estado de direito, um país que não pode ser levado a sério. Acredite-se ou não nas teorias da conspiração.

Vicente Jorge Silva