Na sua coluna no Expresso, pretensiosamente designada “Antes do Tempo” mas que se limita a expor semanalmente as posições do mais chão conservadorismo, de que se tornou um dos expoentes entre nós, João Carlos Espada ataca a BBC a propósito de Relatório Hutton. Declara peremptoriamente que ela já não é o que era e que se tornou cúmplice dos inimigos das tradições e instituições ocidentais e das sociedades livres em que vivemos! Nem mais.
Ora o episódio em causa só revela a excepcionalidade da BBC como órgão de informação independente e responsável. A agora comprovada falta de um dos seus jornalistas seria totalmente irrelevante, de tão banal e corriqueira nas televisões em geral, se não estivesse em causa essa estação. E a sua direcção só foi acusada de não ter “verificado” a história, não de ter deliberadamente encoberto a distorção da verdade factual. Apesar disso, ela demitiu-se, numa atitude de responsabilidade que seria de todo improvável em qualqer outra latitude.
JCE considera que no caso a BBC infringiu o “dever moral e intelectual de procurar a verdade”. Mas se a única falha da estação foi não ter controlado a veracidade de uma informação, apesar de provinda de fonte credível – ainda por cima altamente provável em si mesma -, então que dizer de Bush e de Blair, bem como de todos os jornais e televisões que os apoioaram, que basearam a sua decisão de guerra em “informações” claramente improváveis (como a peregrina tese do ataque em “45 minutos” adoptada pelo governo britânico) e que, não só não se deram ao cuidado de as mandar verificar antes de partirem para a guerra com base nelas, como mandaram interromper propositadamente a missão da inspecção das Nações Unidas que em nada confirmava essas informações? Neste contexto, falar de “desonestidade perante os factos” na questão da guerra do Iraque assenta muito melhor aos críticos da BBC do que a ela.
Ao pé da generalidade das televisões norte-americanas – e nem sequer é previso falar na cadeia Fox, esse modelo de falsificação militante dos factos em defesa das “sociedades livres” –, a BBC não tem de receber lições de objectividade, isenção e independência. Incluindo a independência em relação ao governo em funções (coisa bem difícil nas televisões públicas) e aos ideólogos da guerra que gostariam de a ter, tal como tiveram as outras televisõoes, ao serviço da propaganda bélica, incluindo a mais desavergonhada manipulação da informação. Não é seguramente por acaso que nos Estados Unidos mais de 80% da população acreditava nas patranhas sobre o arsenal iraquiano das armas de destruição maciça, que lhe eram diariamente servidas nos média, havendo mesmo uma forte percentagem a acreditar que elas foram usadas na guerra!
É por isso que Bush & Blair, bem como os seus ideólogos, estão a ser impiedosamente desmentidos pelos factos (e, mesmo assim, não se demitem...), enquanto a BBC, como ontem refere no El País o insuspeito Mário Vargas Llosa, permanece como um padrão de referência na isenção informativa, na independência política e na responsabilidade perante o público, mesmo quando um dos seus jornalistas se engana e ela é fundadamente acusada de ter falhado numa situação concreta.
No meio da histeria guerreira da generalidade dos média em relação ao Iraque, a BBC foi uma das excepções reconfortantes, em que o "respeito pela verdade dos factos" levou a melhor sobre o alinhamento na doutrinação belicista oficial. A hostilidade dos partidártios da guerra é por isso um elogio.
Vital Moreira