Assistimos ontem, na reunião periódica de Blair com deputados do Parlamento britânico, a mais um curioso debate sobre o Iraque. Em resposta a uma pergunta de um deputado da oposição, Blair teimava em reafirmar a sua posição de apoio à guerra. Depois de dizer que, mesmo após David Kay ter indicado que não havia armas de destruição maciça, a guerra, na sua opinião, continuava a justificar-se, o deputado da oposição perguntou-lhe assim (brilhante!): Então, por outras palavras, se Hans Blix tivesse continuado as inspecções em Março de 2003 e tivesse dito que não havia armas de destruição maciça, o Senhor ia para a guerra na mesma? Apanhado assim de surpresa, Blair ensaiou a fuga para a frente e disse, para logo embrulhar a resposta: Sim ia!!! Porque tinha havido desrespeito da resolução 1441... E por aqui prosseguiu a sua justificação. Notável!
Eis a nova linha de defesa do Governo de Blair: Avançou-se para a guerra por causa do desrespeito do Iraque pelas resoluções do Conselho de Segurança. Os náufragos agarram-se a tudo para não se afogarem. Agora Blair agarra-se ao parecer que Lord Goldsmith, Attorney General, apresentou a pedido do Governo em Março do ano passado, para tentar encontrar uma justificação jurídica para a ilegalidade cometida.
Ilegalidade bem demonstrada de forma esclarecedora na maioria das análises feitas pelo elenco de peso de docentes de direito internacional que então se pronunciou - Prof Ulf Bernitz, Dr Nicolas Espejo-Yaksic, Agnes Hurwitz, Prof Vaughan Lowe, Dr Ben Saul, Dr Katja Ziegler (University of Oxford), Prof James Crawford, Dr Susan Marks, Dr Roger O'Keefe (University of Cambridge), Prof Christine Chinkin, Dr Gerry Simpson, Deborah Cass (London School of Economics), Dr Matthew Craven (School of Oriental and African Studies), Prof Philippe Sands, Ralph Wilde (University College London), Prof Pierre-Marie Dupuy (University of Paris). Delas muito sumariamente pode retirar-se que:
Há poucas dúvidas quanto à ilegalidade da acção militar. Não encontrou apoio na Carta das NU e a resolução 1441 não legitimava a força armada. Faltava-lhe a expressão «all necessary means», ou elemento equivalente, que a resolução 678, de 1990, incluía e que legitimara a força em 1991. Elemento cuja inclusão não recolhera consenso durante a negociação da resolução 1441 - que só assim logrou consenso. Basta ler as duas resoluções para perceber a diferença.
A justificação jurídica britânica, então defendida pelo Attorney General, acabou por ser a mesma já utilizada em 1998, quando da "acção unilateral" de bombardeamento do Iraque por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido. Justificação jurídica que já então não tinha convencido ninguém. Baseava-se na referida resolução 678 de 1990. Mas esta posição não colhe, uma vez mais, porque a resolução 678 aplicava-se à situação de ocupação do Kuwait pelo Iraque.
Ora, o capítulo da invasão e ocupação do Kuwait foi encerrado com a retirada do Iraque, no fim da guerra do Golfo já em 1991, pela resolução 687. Foi esta última resolução que regulou a questão para o futuro, designadamente sobre as obrigações do Iraque em matéria de desarmamento, nada dizendo quanto à possibilidade de intervenção armada por desrespeito por parte do Iraque dessas obrigações. Deixou pois ao CS a última palavra sobre este aspecto.
Uma questão de tal gravidade como o recurso à intervenção armada não pode decorrer de uma autorização "implícita". Mas é o que parece defender o Attorney General britânico recorrendo a uma autorização conferida por uma resolução de 1990 que se aplicava a uma situação determinada e já extinta.
Mesmo a referência ao desrespeito das "resoluções posteriores", na resolução 678, apenas poderia ser entendida no quadro específico da situação existente de invasão do Kuwait, para o qual a resolução tinha sido adoptada. E não, naturalmente, como habilitando o recurso à força em todas as outras situações de desrespeito por parte do Iraque das dezenas de resoluções que vieram a ser aprovadas posteriormente pelo CS.
Tanto é assim que se procurou aprovar nova resolução para legitimar o uso da força, elemento que a resolução 1441 claramente não logrou incluir.
Mas Blair não está preocupado com a ‘bondade’ do parecer do seu Attorney General. Tal como pareceu não estar preocupado com a ‘fiablidade’ dos dados da intelligence do seu país. Basta que o parecer e os dados de intelligence existam e não contradigam os seus propósitos de participação na guerra. Ao jeito da apreciação ‘formal’ de Lord Hutton, que Blair conta faça jurisprudência, espera o seu Governo sair outra vez ilibado. Mais do que a iminência da ameaça de Saddam Hussein, o uso da força aparece agora justificado pela obrigação de fazer respeitar as resoluções do CS.
E o Governo invocará, uma vez mais indignado, a sua inocência quanto à "malévola" insinuação de ter influenciado de alguma forma a intelligence ou sequer o parecer do Attorney General. Insinuação que mais uma vez dificilmente será comprovada. Como dizia ontem a propósito de declarações de David Kay, o editorial do Washington Post, ‘Blame Blindness’, escrito por Richard Cohen - um comentador mais chegado aos republicanos, mas que neste particular está já desiludido - "David Kay assures us that intelligence analysts were not pressured by the Bush administration to doctor their findings to please their bosses. With all due respect, this is the same Kay who once, with a huge amount of enthusiam, thought Iraq was one vast repository of weapons of mass destruction. In other words, he ain't infalible. Moreover, he seems to have never hung around an office water cooler. Anyone who has can tell you that bosses usually don't pressure. But they hint at what pleases them. When all your bosses are seeking a certain outcome, it takes a gutsy subordinate to give them bad news. This is not just the way the CIA works. This is the way life works...’
João Madureira