terça-feira, 30 de março de 2004

Esquerda v. direita

As considerações de J. Pacheco Pereira sobre o abundante uso, hoje em dia, das noções “esquerda” e “direita” como qualificações políticas carecem de ser completadas com três aspectos que me parecem igualmente relevantes.
Primeiro, a utilização de formas de identificação política mais abrangentes (esquerda-direita, ou gradações desta, tipo extrema-esquerda, centro-esquerda, etc.), em vez de noções correspondentes aos partidos ou ideologias políticas (comunistas, socialistas, social-democratas, democratas-cristãos, etc.) tem a ver também com a crescente ausência de identificação partidária da maioria das pessoas e com o aumento da volatilidade eleitoral. Há cada vez menos pessoas nos partidos ou fiéis a cada partido, havendo muita gente que se sente “de esquerda” ou “de direita” mas que não se identifica com nenhum partido em especial da sua área.
Segundo, o retorno em força das qualificações políticas no esquema clássico esquerda-direita (e em especial das auto-qualificações) traduz também a progressiva diminuição de distinções ideológicas e programáticas dos partidos, tornando-os menos diferentes do que já foram, sobretudo no que respeita aos grande projectos de transformação económico-social. Por exemplo, que sentido tem ainda uma pessoa dizer-se que é comunista ou socialista, se os partidos correspondentes deixaram de ter como objectivo a colectivização ou socialização da economia? As noções mais genéricas de esquerda-direita apelam mais para diferenças de valores culturais e de comportamentos políticos, que é o que hoje sobressai.
Terceiro, a ênfase na dicotomia genérica clássica traduz a reacção contra as ideologias negacionistas da própria distinção esquerda–direita, associadas às ideias de “fim da história” e do “fim da ideologias”. Na verdade, afastada a divisória clássica quanto aos sistemas económicos, com o triunfo universal da economia de mercado mais ou menos regulada, não desapareceram porém as diferenças, pelo menos de grau, quanto à regulação e ao papel do Estado, quanto à coesão social, direitos sociais e serviços públicos, quanto ao relevo da ideia de igualdade, quanto ao compromisso entre liberdade pessoal e a segurança, quanto à guerra e à paz, quanto à despenalização do aborto e a abolição da pena de morte, quando à ordem económica internacional e à globalização, etc., etc.