segunda-feira, 1 de março de 2004

O privado e o público, segundo Pacheco Pereira

Por razões várias, tenho andado arredio, nos últimos tempos, dos meus saudáveis hábitos de intervenção bloguística. Por isso, não comentei oportunamente o artigo de Pacheco Pereira no “Público” da passada quinta-feira onde me é feita uma referência directa. Embora mais tarde do que desejaria, não resisto a um breve esclarecimento.
Pacheco Pereira afirma que eu defendia a tese de que “a hipocrisia entre o discurso público e a vida privada justificava a revelação do contraditório entre as palavras e as acções”. Esclareço: defendia e defendo. Não por qualquer pretensão vingativa e moralista, mas por uma questão de seriedade, frontalidade e transparência na vida pública.

Hipocrisia e duplicidade
Se, por hipótese, um político ou outra personalidade com responsabilidades públicas relevantes desencadeia uma campanha persecutória contra o que considera ser uma prática moral e socialmente condenável (o aborto, o adultério, a homossexualidade, entre outros exemplos possíveis) e ele próprio está envolvido em tais “desvios”, devemo-nos conformar com essa hipocrisia e essa duplicidade? Entendo, obviamente, que não. Se essa hipocrisia e essa duplicidade forem do conhecimento público ou estiverem efectivamente comprovadas, não será lícito constatar que o “rei vai nu”? Entendo, obviamente, que sim.
Pacheco, pelo contrário, entende que esta tese “abre caminho a todos os abusos e coloca o jornalista numa posição de julgador de carácter, que é um acto, ele próprio, do mesmo tipo do discurso moralizador do político que ele denuncia”. E adianta: “A moral do julgador tornava-se ela própria matéria de julgamento. Não demoraria muito até que a vida pública fosse uma continuada patrulha do carácter”.

“Patrulhas do carácter”
O meu desacordo é total. Expor uma contradição e uma hipocrisia entre as palavras e os actos, não faz do jornalista um julgador e muito menos um patrulhador do carácter. Ele limita-se a apontar a incongruência de quem se arvora em juiz severo das “taras” morais da sociedade e que, no entanto, também as pratica. Se todos aqueles que se propõem atirar a primeira pedra souberem que correm o risco de ser apanhados por ela, num efeito de “boomerang”, a vida pública seria certamente menos intoxicada pelas cruzadas de moralismo hipócrita de tantos demagogos. Ora, Pacheco Pereira parece preferir um regime de opacidade e silêncio cúmplice, em que os hipócritas e os dúplices poderão prosseguir as suas “patrulhas do carácter” contra os suspeitos dos mesmos “pecados” que eles próprios impunemente cometem.

Vicente Jorge Silva