Com a sua provocante afirmação de que é necessário «negociar» com as organizações terroristas, dado que é «impossível matar todos», Mário Soares colocou-se a jeito para “levar pancada” de toda a gente, o que não tardou, tendo mesmo alguns chegado ao dislate de o acusar de “capitulacionismo”, como se a sua história política pessoal autorizasse tal injúria.
Na verdade, porém, tomada essa frase à letra e nas circunstâncias em que foi proferida, depois do massacre de Madrid, não é de modo nenhum defensável uma negociação com os seus responsáveis últimos, ou seja, a Al-Qaeda. Sem dificuldade se entende que MS pretendia contestar a tese belicista, defendida pelos adeptos de George Bush, segundo a qual o terrorismo se combate com a guerra. Mas uma coisa é criticar as teses guerreiras, em favor de medidas de segurança e outros meios políticos, outra coisa é excluir de todo em todo o recurso à força em última instância contra Estados que provadamente acolham e protejam grupos terroristas e se recusem a deixar de o fazer, como sucedeu com o Afeganistão. Uma coisa é defender, contra as teses belicistas, que o terrorismo islâmico tem raízes que devem ser atacadas por meios políticos, de modo a suprimir os factores de que ele se alimenta e que o “legitimam” perante as massas árabes (a começar pela questão palestiniana e pela ocupação do Iraque), outra coisa é defender a negociação com os próprios grupos terroristas.
É certo que a história das últimas décadas apresenta diversos exemplos de negociações com grupos políticos que recorreram directa ou indirectamente ao terrorismo, desde as lutas de libertação colonial (v.g Argélia), passando pela Irlanda do Norte e pela Palestina (reconhecimento da Autoridade Palestiniana), só para dar alguns exemplos. Mas tratava-se de forças políticas movidas por causas justas, contra situações de opressão e repressão, para quem os atentados terroristas representaram um meio desesperado de luta (mesmo assim condenável), sendo a negociação um meio adequado para remover a situação de conflito subjacente ou abrir perspectivas de solução dela, desse modo tornando a violência desnecessária. Não é esse porém o caso do terrorismo internacional do radicalismo islâmico, cuja justificação assenta na defesa de uma visão fundamentalista do Islão contra a ameaça da “civilização ocidental” (representada à cabeça pelos Estados Unidos) e mesmo contra os governos islâmicos mais moderados, não apresentando objectivos políticos minimamente negociáveis ou transaccionáveis. Pelo contrário, para além da solução dos abcessos que lhe dão motivação imediata (a questão da Palestina e a ocupação do Iraque), a luta contra as raízes do terrorismo internacional deve investir no desenvolvimento económico, social e político do mundo islâmico e no apoio às forças moderadas e pró-democráticas internas que procuram a modernização e a democratização dos mesmos países, o que significa contrariar frontalmente os objectivos do terrorismo.
É por isso que a invasão do Iraque foi um desastre na luta contra o terrorismo, pois em vez de atacar as bases políticas e culturais do terrorismo, apenas contribuiu para as reforçar, dando-lhes mais um motivo de agravo, pela invasão injustificada e ocupação de um país islâmico. Como já aqui se disse, ela não foi uma guerra contra o terrorismo mas sim um favor prestado ao terrorismo. Se não tem sentido negociar com a Al-Qaeda, muito menos tem alimentá-la a pretexto de lhe fazer guerra.
Vital Moreira