Pouco depois de ter sido admitida no MNE, em 1980, fui a um almoço de despedida de uma funcionária administrativa que se reformava (só em 1975 o Ministro Mário Soares, aconselhado pelo progressista Embaixador Humberto Morgado, abrira a carreira diplomática ao sexo feminino). Na mesa, a meu lado, calhou um diplomata já entradote (e de baça folha de serviços, apurei depois) que me mimoseou com ares e chistes marialvas. Quando advertido de que eu era exemplar da nova espécie das mulheres-diplomatas, passou aos remoques sobre o que é que estávamos a fazer numa carreira que «não era para mulheres», os lugares que assim tirávamos a jovens válidos, as qualidades exigíveis que não tínhamos…. Aguentei quanto pude, mas a tampa acabou por me saltar: retorqui-lhe estar mais do que provado que a carreira exigia qualidades ‘femininas’ - a prova era a abundância de diplomatas homossexuais…. A tirada foi tão certeira, como rasteira. Mas não indiciava homofobia.
Em mais de vinte anos de carreira no MNE respeitei quem merecia ser respeitado, independentemente de ter olhos azuis ou castanhos, ser de direita ou de esquerda, ‘gay’ ou ‘straight’. Por esse mundo fora fiz amigos homossexuais, mais homens que mulheres. E compreendi as razões por que «a carreira» sempre atraiu homossexuais, como os serviços diplomáticos em todos os países – oferecia um espaço de liberdade individual, precioso para quem se sentia oprimido pela família e pela sociedade. Isso era mais sentido há vinte anos, quando a hipocrisia era ainda maior e a homossexualidade socialmente menos aceite. Hoje não creio que a incidência de jovens ‘gay’ por metro quadrado no MNE seja maior que noutras profissões ou segmentos na sociedade portuguesa.
Lidei com homossexuais assumidos, mais ou menos discretos, gente bem na sua pele: alguns solteiros, muitos casados, vários até muito bem casados, quase todos pais extremosos. Também lidei com muitos mais não-assumidos e com distorções de personalidade que o recalcamento e/ou encobrimento da orientação sexual agravam com o passar dos anos. Distorções patológicas que fazem sofrer os próprios e que eles infligem a quem lhes está próximo – cônjuge, parceiros, filhos, familiares, amigos, colegas ou subordinados. Distorções que frequentemente se escondem atrás de proclamações homofóbicas. Quando as ouço, desconfio: é que não conheço nenhum heterossexual realmente satisfeito com os limites da sua sexualidade que sinta necessidade de a afirmar pela negativa, definindo-se como anti-homossexual.
Não sei se é o caso do Presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção, que recusa aos homossexuais a capacidade de adoptar crianças. Arrepiam os preconceitos e as atoardas sem base científica. Arrepia o discriminar de cidadãos, ao arrepio da Constituição e de dezenas de convenções internacionais de Direitos Humanos que Portugal subscreveu.
Qual será o próximo passo dos governantes hipócritas que mantêm aquele Presidente naquela Comissão? Uma cruzada para retirar os filhos aos pais que disfarçam a homossexualidade em casamentos de fachada?
Ana Gomes