Agora que o seu corpo foi recuperado em East River, Spalding Gray pode finalmente transformar-se num ícone das novas gerações. Não faltará quem encontre sinais reveladores da sua profunda agonia onde antes apenas se vislumbrava um humor transgressor. Não faltará quem lhe descubra o génio onde antes se encontrava a eterna sombra de Willem Dafoe com quem fundou o Wooster Group. A morte gera quase sempre um efeito de complacência. E Spalding está muito longe de o merecer.
Vi dois dos seus monólogos em vídeo: Monster in a Box e Gray’s Anatomy. Tinha, como acontecia na quase totalidade dos seus monólogos, a companhia de apontamentos e de uma mesa. Falava das suas doenças e do trabalho de escrita com um delicioso e perverso humor negro. Todo o seu trabalho de actor e comediante era alicerçado nessa espécie de humilhação das próprias entranhas, humilhação que provocava o riso sincero das plateias. Riso que agradecia como qualquer humorista.
Spalding Gray não foi um génio, mas ficará para a história porque o seu corpo foi recuperado depois de, presume-se, se ter atirado borda fora de um ferry que liga Nova Iorque a Staten Island. Não sabemos se terá ouvido o riso da assistência antes da sua última auto-ironia. Decerto terá tido essa tentação.
Quando em Portugal se multiplicam programas de stand up comedy, programas que multiplicam as oportunidades de fama a jovens que moldam todo o seu raciocínio à construção de piadas e piadolas, é justo lembrar que o humor está muito mais próximo da tragédia do que se pensa. Que o humor passa sempre por nos sabermos rir de nós próprios. Processo terrivelmente doloroso esse. Vivamos então o tempo das piadolas, o tempo da fama fácil, o tempo das anedotas. Um tempo que nos cobre de vazio, que nos imobiliza e adormece. Um suicídio assistido.
PS: não pude deixar de lembrar o excelente Stand up Tragedy, interpretado por Tiago Rodrigues e escrito por Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos. Todos eles profissionais das Produções Fictícias e meus amigos. Estou em crer que os três morreram um bocadinho hoje. E tenho a certeza que entre o suicídio assistido e torpe e o mergulho no ferry e na solidão saberão escolher a única via possível.
Luís Osório