«Salazar, como Estaline ou Franco, não pode ficar no fundo do baú da História. Não temos de aderir ao seu projecto, mas de o pensar. E muito do que ele foi existe ainda: no actual antiamericanismo encontra-se muito, mas muito, do seu horror aos EUA. Este medo do mundo, esta convicção de que podemos fechar-nos na nossa concha que a esquerda – ou alguns partidos que se apresentam como de esquerda – reivindica, é algo a que Salazar fez imenso apelo: «Nós somos pequeninos, ninguém vai dar por nós.» Essa ideia de que «eles» que façam a política – sendo «eles» os EUA – que nós não temos nada a ver com isso, é muito a ideia do jardinzinho à beira-mar plantado, é profundamente salazarista... »
(Helena Matos, Diário de Notícias, 4-4-2004)
Esta passagem da entrevista de Helena Matos sobre Salazar, a propósito do lançamento de mais um livro seu sobre o ditador vitalício do Estado Novo, não pode passar sem contradita.
A desafeição salazarista em relação aos Estados Unidos tinha dois fundamentos principais. Um era o nacionalismo (económico, político, cultural) típico do fascismo e das doutrinas afins dos anos 20 e 30, que aliás não visava somente os Estados Unidos. Outra era o facto de os Estados Unidos, como representante extremo do individualismo e do liberalismo modernos, chocar com o seu pensamento anti-individualista e antiliberal, corporativista e autoritário, de matriz pré-liberal.
Ora a esquerda europeia, pelo menos a social-democracia e o socialismo democrático dominantes, nunca se distanciou dos Estados Unidos por esses motivos, quer por ter sido sempre assaz internacionalista e “cosmopolita”, nos antípodas do nacionalismo salazarista, quer porque a crítica socialista ao individualismo liberal sempre se limitou à economia (e não à esfera cultural e política, como no caso salazarista) e sempre foi motivado por razões democráticas e sociais, tipicamente “pós-liberais”, de novo no extremo oposto do antiliberalismo e do antidemocratismo autoritário do Estado Novo.
De resto, essa esquerda sempre compartilhou das orientações mais democráticas e mais “sociais” de um Roosevelt, de um Kennedy ou de um Clinton, para só citar três exemplos, pelo que a conotação de “anti-americanismo” é pelo menos despropositada. Além disso, confundir a presente crítica da esquerda europeia à actual administração norte-americana – que aliás não é exclusiva da esquerda, como mostra o caso da direita francesa – com “anti-americanismo” é tão abusivo como seria confundir "antiberlusconismo" com anti-italianismo.
E, por último, a crítica europeia ao “bushismo” não é feita em nome de uma visão nacionalista mesquinha, mas sim, ao invés, em nome de uma visão europeísta, universalista e multilateralista contra a estreiteza unilateralista e “imperial” de Washington. Por isso, ver nessa crítica uma herança do paroquialismo salazarista –, eis o que ultrapassa o entendimento...
Vital Moreira