O Presidente da República partiu do princípio, correcto, de que a questão não era a constitucionalidade nem a legitimidade das duas alternativas em causa, não havendo nenhum princípio que tornasse obrigatória a continuidade governamental (como queria a direita) ou a realização de eleições (como queria a esquerda e diversas personalidades a ela alheias). O que estava em causa era uma questão política, cuja resolução num sentido ou noutro cabia na liberdade de decisão pessoal do Presidente, a saber, se havia razões bastantes para rejeitar a formação de novo governo da actual coligação com outro primeiro-ministro e para justificar a dissolução parlamentar e convocar novas eleições.
Sampaio privilegiou claramente os argumentos a favor da continuidade governativa (apesar de ela ter sido efectivamente interrompida pelo abandono do primeiro-ministro), tornando a legislatura uma espécie de fetiche a que tudo se deve sacrificar, não tendo considerado decisivos (ou nem relevantes, porque não os mencionou sequer) os argumentos que poderiam fundamentar a opção pelas eleições, designadamente a saída do primeiro-ministro que encarnava a vitória eleitoral da direita nas eleições de 2002 e a coligação governamental, o inequívoco divórcio entre o eleitorado e a maioria parlamentar existente -- revelada nas recentes eleições europeias e noutros elementos relevantes --, a controversa personalidade e as inclinações populistas do apontado primeiro-ministro e ainda o perigo sério de este novo governo não passar de um "comité eleitoral" no ciclo de eleições que vão ocorrer neste dois anos, colocando o Estado ao serviço dos interesses políticos da coligação.
Objectivamente, portanto, numa questão em que ambas as alternativas em presença eram admissíveis (de outro modo não se compreenderia tanta hesitação), o Presidente acabou por optar a favor da coligação governamental, ao livrá-la de se confrontar com o eleitorado e responder, com uma previsível derrota, pelo governo que agora termina . Se esta decisão tivesse sido assumida sem tergiversação desde o início, seguramente que ela não teria suscitado tanta paixão. O pior é que, tendo demorado 15 dias a decidir e tendo dado campo para a criação de uma ampla convicção favorável à antecipação de eleições -- que se tornou ela mesma um elemento da equação a resolver pelo Presidente --, a sua decisão final aparece como um inesperado prémio à direita e uma imerecida derrota da esquerda.
Doravante nada será como dantes na relação do PR com o "povo de esquerda", que duas vezes o elegeu.