domingo, 1 de agosto de 2004

Boston II - Kerry ultrapassa o factor ABB

O sentimento anti-Bush a alastrar além do campo democrata levou os estrategas da campanha de John Kerry a impor a moderação nos discursos na Convenção - nada de ataques pessoais, nada de beneficiar Bush com um efeito de underdog que fizesse hesitar os dependable voters. O mais cerebral e demolidor requisitório contra as políticas de Bush, designadamente quanto ao Iraque e luta contra o terrorismo, foi feito por Jimmy Carter, na primeira noite da Convenção, sem precisar de pronunciar o nome do Presidente. Clinton, uma hora mais tarde, encarregou-se de electrizar a audiência, mostrando sobretudo como os Republicanos são os dividers e só os Democratas poderão unir a América.
Nos primeiros dias da Convenção percebia-se que, mais do que o apoio a Kerry, o factor ABB - Anything But Bush - era o grande aglutinador de todo aquele activismo organizado, determinado, frenético! Impressionou-me sobretudo o rol de profissionais dos media e das artes e espectáculos envolvidos na campanha de Kerry e o nível de empenhamento que estão a assumir (e com custos profissionais, que o digam Whoopi Goldberg e Linda Ronstadt).
Todos estavam suspensos do impacte do discurso de Kerry, no último dia, de ele ser ou não capaz de desmentir a imagem aloof que mesmo os mais indulgentes lhe colavam.
David Gergen (editor at large do US News & World Report, que foi conselheiro de Clinton e Reagan e colaborador das administrações Nixon e Ford), num seminário a que assisti, lembrou que nas Convenções Democráticas em que foram indigitados, Carter e Clinton eram ainda menos conhecidos e estavam muito pior em termos de adesão emocional dos militantes. E outros calejados analistas sublinham que nunca foi um discurso na Convenção que convenceu os swing voters - eles decidem à boca das urnas, tudo depende do que se passar até lá. E, sobretudo, quase tudo depende dos debates televisivos entre os candidatos.
O teste da televisão é também o fundamental num evento orquestrado como a Convenção. E Kerry soube combinar o tom presidencial e o apelo emocional. Correspondeu à aposta da campanha durante toda a semana, no sublinhar do carácter do homem, do líder, do futuro commander-in-chief, do veterano do Vietname tão decidido a salvar a vida a subordinados (um deles, o negro Reverendo Alston, fez na Convenção um vibrante elogio da fibra do Kerry reporting for duty), como depois a contestar a estupidez daquela guerra.
Se o sentimento anti-guerra Iraque é o mais poderoso componente do activismo determinado pelo factor ABB, Kerry aí não surpreendeu nem empolgou, mas também não decepcionou.
A prestação de Kerry acabou por ultrapassar as expectativas, tanto dos militantes reunidos no Fleet Center, como dos comentaristas televisivos não arregimentados pelo campo Bush.

Ana Gomes