terça-feira, 20 de dezembro de 2005

para o Luís, filho mais novo

CARTA AOS FILHOS DOS MEUS AMIGOS

O Princípio
Queridos rapazes e duas meninas, é o "tio". Não sei escrever cartas - desculpem. Os vossos pais ensinarão como se deve fazer. Ou não, que agora - com o e-mail e o msn e o sms - já se perde muito esse hábito da correspondência escrita. Se eles forem conservadores ou românticos ou as duas coisas ao mesmo tempo, dir-vos-ão que se poderá começar uma carta por "Meu caro", "Meu querido", "Exmo. Senhor", enfim, tudo dependendo do grau de proximidade e de afectos com o interlocutor em causa. Pessoalmente, não me agrada o "caro", que é pomposo, nem o "querido" antecedido de pronome possessivo nem, obviamente, os excelentíssimos senhores (que, na verdade, não há). Adoptei, nas poucas cartas escritas e enviadas, um princípio bem mais simples: o nome do destinatário, e depois vírgula, mais linha em branco, e aqui vamos nós para o texto propriamente dito. Assim sendo, leiam -

André,

Rodrigo,

Miguel,

Beatriz,

Inês,

escrevo, em primeiro lugar, para vos dar os parabéns pelos espantosos pais que têm. Como conservador romântico que sou, digo-vos já (antes de mais conselhos): confiem neles, ouçam-nos, não tenham medo de lhes fazer toda e qualquer pergunta, mesmo que já tenha passado a idade dos porquês -- e, sobretudo, não se esqueçam, por favor, de lhes perguntar pela vida que tiveram antes de vocês chegarem ao mundo. É fundamental não deixar fugir quem se ama sem conhecer tudo o que ele amou e odiou, todos os passos certos e os tropeções que deu. Vocês, em boa parte, resultaram desses acasos e desse livre-arbítrio para vir cá ter. Há coincidências, não há coincidências, importante é perceber o passado dos nossos pais para que nos sirva de exemplo.

O pão

Comprar pão todas as manhãs. Essencial. Não o comprem à noite. O pão que vale a pena é feito de madrugada e deve comer-se antes que endureça. Uma carcaça fria e seca pode estragar um dia e a vida é demasiado curta para desperdiçar horas preciosas. Evitem as baguetes francesas - os tipos estão convencidos de que sabem fazer pão mas aquilo não é comida que se preze, é uma arma branca ou de arremesso. Comprem nas padarias lisboetas ou dos subúrbios. Pão branquinho, com mais volume, consistência, perfume. Sem um pão bem escolhido pela manhã não se consegue um pequeno-almoço como deve ser e, por muitas voltas que se dêem, essa continuará a ser a refeição mais importante do dia. Acreditem no que vos digo, tenho quase 28 anos e a última vez que tomei dois pequenos-almoços seguidos, era a minha mãe que os fazia para tomar antes de ir para a escola. Tenho saudades desse tempo, quando as manhãs existiam e eram produtivas. Façam o que vos digo, não como eu fiz. Comprar pão pela manhã é a melhor forma de garantir que se goza o dia na sua plenitude e que saímos da cama a horas consideradas decentes pela sociedade. É importante sentir a luz do dia. O nosso corpo precisa disso. Pode até ser que, na altura em que lerem isto, vários anos depois deste dia em que vos escrevo, tenha mudado o meu rumo, perdido as olheiras e recuperado o prazer das manhãs. Assim espero.

A adolescência

Vocês são agora bebés. Bela época, sobretudo para os vossos pais e para quem os visita e brinca convosco. Também já fui bebé mas não me lembro nada bem. É chato. Se me lembrasse talvez não tivesse acordado os meus pais tantas vezes a meio da noite mas, por muito que eles se queixem, vão ter saudades do tempo em que vocês eram pequeninos, gatinhavam e ainda não tinham memória. Porquê? Porque, mais tarde ou mais cedo, chega a adolescência. Meus amigos, deixem-me dizer-vos isto do fundo do coração, até porque é muito provável que me estejam a ler já nessa fase das vossas vidas: não sejam cretinos. A adolescência é uma época parva mas um mal necessário. Vejam-na como uma doença suportável com remédio certo - o tempo. A adolescência passa e o importante é que retenham algumas das seguintes informações: arranjem um grupo de amigos, comprem Clearasil, evitem vestir roupas oferecidas por familiares, estudem (não custa nada no Liceu, por amor da santa!), leiam alguns clássicos, vários jornais e muitas coisas escritas por vocês próprios, e não discutam com os vossos pais excepto se notarem sobranceria ou condescendência. Pais, amigos, cuidado: a adolescência é uma etapa estúpida na vida mas onde a maioria dos traumas com consequências para o futuro se acumulam. Simulem, sejam actores, façam das tripas coração mas nunca demonstrem menosprezo ou indiferença pelos "terríveis" problemas dos filhotes.

O sexo

Evitem os conselhos do Papa Bento XVI, que provavelmente já foi substituído entretanto por outro menos radical e mais progressista (queira Deus, literalmente); evitem animais, professores e menores - excepto se também vocês forem menores. Prefiram o ar livre às pensões rascas. Frase a partir da qual poderia, aliás, começar uma manif.

A política

Evitem o Bloco e o PP. Aliás, ignorem todo o tipo de extremismos. Mantenham-se independentes. Recordem-se que estão em Portugal, onde tudo é 8 ou 80. Aprendam, por isso, a relativizar. Desprezem a mentalidade reinante. Procurem os méritos existentes nas barricadas opostas e participem em discussões que possam perder. Aprende-se muito. Clubismo bacoco, só no futebol, claro. Escolham, se puderem e já agora, o Benfica. Precisamos desesperadamente de pessoas bonitas nas bancadas da Luz. Comprem jornais de orientações ideológicas diversas. Esclareçam as dúvidas com os pais e, sobretudo, com os vossos avós. Leiam muito sobre História. Votem.

O amor

Ouçam Caetano, Mew e Tindersticks. Depeche Mode, James, Go-Betweens, Smiths, Lloyd Cole, Jorge Palma e Nick Cave. Devorem concertos. Comprem discos - só saquem da net se a FNAC não os tiver disponíveis. Coisa que sucederá amiúde, estou em crer. Leiam poesia portuguesa. Aliás, emprestem discos e livros aos amigos, num intercâmbio permanente com a serena consciência de que os objectos podem não mais voltar às vossas mãos. Sejam fiéis depositários das pedras preciosas que os vossos amigos decidirem partilhar convosco. Aprendam a tocar um instrumento. Apontem o máximo possível dos pormenores dos vossos sonhos, mal acordem e poucos minutos antes de sair de casa para comprar pão. Telefonem muitas vezes aos vossos pais. Vão ao cinema pelo menos uma vez por semana. Escrevam cartas aos mais próximos e aos mais distantes. Contem o vosso maior sonho à pessoa perto de vós que mais desesperada parecer estar. Talvez a inspire. O mundo, neste século, muda-se pessoa a pessoa. Uma de cada vez, numa lenta mas eficaz cadeia de afectos. Despeçam-se dos empregos onde reinar o cinismo. Se nada disto resultar, comecem de novo pelas vossas próprias regras. O amor - sobre o qual tantos artistas já escreveram, pintaram, compuseram, esculpiram, morreram, etc -, estará sempre disponível num sítio enigmático qualquer onde, misteriosamente, os bilhetes já esgotaram mas ainda há lugares para VIP's e para felizes contemplados com acesso aos bastidores. O importante é partir e fazer por merecê-lo. Acho.

[publicado em A Capital (antes de o Luís nascer)]