quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Avestruzes

A Lena e a Teresa vivem juntas, são homossexuais assumidas e querem casar.
Se fossem a Espanha, aqui ao lado, ou à Bélgica, ou à Holanda, ou à Grã-Bretanha, poderiam já casar.
Em Portugal ainda não (sublinho o ainda, porque é só uma questão de tempo).
"Não é uma prioridade", dizem dirigentes socialistas para desvalorizar o assunto e assim evitar equacionar o problema e tomar as decisões políticas que ele requer. (A JS, porém, mostra que no PS há gente sem preconceitos e desculpas caretas).
Desde quando é que questões de direitos humanos (e não se ser discriminado negativamente releva dos direitos humanos e liberdades fundamentais) não são uma prioridade para quem é coerentemente socialista?
Desde quando é que quem é dirigente prefere a táctica da avestruz e se abstém de liderar em questões de sociedade, de relevância política, social e cultural da maior actualidade - tanto, que até já estão resolvidas noutros nossos parceiros europeus? (E os devotos de Tony Blair bem podiam inspirar-se na liderança dele nesta matéria).
Desde quando é que se rejeitam como não prioritários dilemas que estão na nossa frente, impostos pela evolução social e política no nosso país, que obviamente não escapa (e ainda bem) à influência da evolução de costumes e percepções na Europa e no mundo globalizado em que vivemos?
É que estas são questões estrategicamente prioritárias para uma esquerda moderna, sobretudo quando no governo se atem ao paradigma económico dominante. Questões que devem ser enfrentadas agora pelos socialistas, com o tempo de debate necessário, e não à pressa, mais tarde, num momento necessariamente condicionado por disputas eleitorais e naturalmente menos propício a uma reflexão séria. Se não for a esquerda, quem será? Esperar-se-à que seja a direita a promover a resolução destas questões?
Com o argumento de atender apenas a interesses ditos prioritários (o emprego e o progresso económico sempre foram desafios "prioritários", não é de agora nem apenas conjuntural) e de temer afrontar sentimentos conservadores, machistas, enraizados em sectores da sociedade portuguesa, nunca se teria evoluído na regulação jurídica e política de matérias de profundas implicações sociais e até religiosas.
Nessa lógica salazarenta ainda hoje teríamos filhos "ilegítimos", não teríamos divórcio, nem uniões de facto protegidas pela lei, nem certamente teríamos mulheres na carreira diplomática e na magistratura.
Nessa lógica bolorenta ainda hoje em Portugal se condenam as mulheres a poderem ser perseguidas por prática de aborto.
Na (i)moralidade subjacente ao artigo do Código Civil que exclui o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a sociedade fecha os olhos ao casamento de quem é homossexual, desde que com parceiro de outro sexo, como cobertura para a orientação e práticas homossexuais.
É esta hipocrisia que a Lena e a Teresa não aceitam. É essa (i)moralidade que elas desafiam.