1. Sem que tal medida estivesse no programa do Governo, o PS e os demais partidos da esquerda parlamentar aprovaram o retorno da Casa do Douro ao estatuto de associação de direito público, como instituição de representação oficial e defesa dos interesses da vitivinicultura duriense, com inscrição e quotização obrigatória de toda a classe, revertendo a reconversão institucional determinada pelo anterior Governo.
Embora possa ser um exagero dizer que se voltou à "organização salazarista" do vinho do Porto, como afirma Manuel Carvalho no editorial do Público de ontem, e não seja de excluir à partida o regresso ao estatuto da Casa do Douro anterior a 2014, isso suscita duas questões complicadas:
- primeiro, o estatuto de associação pública profissional supõe o desempenho de atribuições públicas suficientemente relevantes para justificar a criação legal de uma "corporação pública" e o afastamento da liberdade de associação, o que não parece ser o caso, pois a nova Casa do Douro não dispõe de nenhum poder de autoridade;
- a representação da vitivinicultura por uma associação oficial unicitária e obrigatória, sem paralelo em nenhuma outra região demarcada, introduz uma óbvia assimetria em relação à representação profissional dos comerciantes/exportadores no conselho interprofissional de representação paritária de corregulação dos vinhos do Porto e do Douro.
2. Além disso, o novo estatuto oficial da CdD recupera alguns traços dos antigos "grémios corporativos" - como a competência para "desenvolver atividade comercial no domínio dos fatores de produção ligados à agricultura" e de "representar os associados (...) em convenções coletivas de trabalho" -, manifestamente conflituantes com a ordem constitucional vigente.
Não é fácil, em geral, acomodar a existência de entidades públicas de representação profissional numa ordem constitucional liberal-democrática, como se verifica desde logo com as ordens profissionais. Mais problemáticas se tornam ainda quando elas assumem poderes que só podem caber a entidades privadas, como é o caso.
Adenda
Um leitor objeta que, se a Casa do Douro persistiu como entidade pública na atual ordem constitucional entre 1976 e 2014, não vê razão para não voltar a ter o mesmo estatuto. Há algumas importantes diferenças, porém: (i) nessa altura a CdD não deixou de exercer alguns poderes públicos de regulação, que poderiam justificar a sua existência como entidade oficial; (ii) parece manifesto que esse estatuto não proporcionou à CdD um desempenho especialmente bem-sucedido; (iii) uma coisa é manter uma instituição por inércia, apesar de problemática, e outra coisa é repristiná-la depois de extinta, num modelo ainda mais problemático.
Adenda 2
Outro leitor lamenta que a Casa do Douro, património histórico coletivo da vitivinicultura duriense, acabe nas mãos de uma associação privada de representação profissional. Mas não tem de ser assim. Por exemplo, poderia ser transformada num instituto de investigação sobre o Douro, afeto à UTAD.
Adenda 3 (9/4)
Defendendo a solução legislativa adotada, o deputado Ascenso Simões - cujo desempenho parlamentar, empenhamento cívico e frontalidade política admiro - não afasta, porém, nenhuma das reservas que acima suscitei. Para uma lei ser boa não basta ter o acordo dos interessados e beneficiários.