segunda-feira, 8 de abril de 2019

Praça da República (20): Família e política - é preciso distinguir

[A família Kennedy em 1938; fonte: aqui]
1. Continua a reinar uma enorme confusão de conceitos no que respeita às relações familiares no âmbito do Governo e nas nomeações governamentais, misturando o que não deve ser confundido.
Importa, em primeiro lugar, distinguir entre (i) "endogamia" (que tem a ver com o critério de seleção dos cargos políticos) e (ii) "nepotismo" (que consiste na nomeação de familiares do próprio titular de cargos políticos). Em segundo lugar, quanto ao segundo, há que separar (i) as nomeações para cargos políticos (como os ministros e outros membros do Governo) e outros cargos públicos de confiança política e (ii) as nomeações de funcionários ou equiparados (como os membros de gabinetes ministeriais e outros). Por último, cumpre distinguir entre (i) o que deve ser proibido como ilícito por via de lei (incompatibilidades e impedimentos) e (ii) o que deve ser autorregulado por via de códigos deontológicos.
Como tenho insistido, o pior que pode suceder é deixar estas matérias sem regulação, ao critério do "bom senso" de cada um, que é o terreno mais fértil para a demagogia política e populismo mediático.

2. Quanto à chamada "endogamia política" - que tem a ver com o relativo "fechamento" do círculo de recrutamento dos titulares de cargos políticos (dirigentes partidários, governantes, deputados, autarcas, etc.) -, isso deve ser deixado ao livre jogo político, ao livre juízo da opinião pública e à responsabilidade política. O facto de haver familiares na vida política (cônjuges, pais e filhos, irmãos, etc.) não é suscetível de condenação, salvo, obviamente, se se nomearem uns aos outros.
O burburinho condenatório que se tem feito a esse propósito não tem nenhum fundamento, sendo um subproduto demagógico da anomia legal e deontológica acima referida.

3. Quanto ao nepotismo na nomeação para os próprios cargos políticos e outros cargos públicos equiparados, a Constituição prevê incompatibilidades, mas remete para lei a sua enunciação, a qual, porém, não proíbe explicitamente a nomeação de familiares.
Ora, ainda que não seja usual tal tipo de nomeações entre nós, era conveniente que a lei proibisse expressamente a nomeação de familiares próximos (a definir), com as respetivas sanções (nulidade da nomeação e sanções pecuniárias, ou mesmo a demissão, para o nomeante), aplicadas pela autoridade da transparência que agora se prevê criar junto do Tribunal Constitucional.

4. Quanto ao nepotismo na nomeação de colaboradores ou de outros funcionários por parte dos titulares de cargos públicos, ela está coberta pelo princípio constitucional da imparcialidade da Administração pública e já existe a norma dos impedimentos do art. 69º Código de Procedimento Administrativo, interpretada extensivamente, que exclui os cônjuges (ou equiparados), os ascendentes e descendentes e os irmãos, bem como os afins correspondentes (sogros e enteados, cunhados, genros e noras).
Como já escrevi anteriormente, penso que esta cobertura é hoje exígua e que devia ser ampliada aos parentes e afins até ao terceiro grau de parentesco (tios, sobrinhos).

5. Como também já escrevi, para além das incompatibilidades e impedimentos mínimos estabelecidos por lei, a ética política pode ser mais exigente, abrangendo um círculo de familiares maior, bem como os familiares próximos de outros membros do mesmo órgão político (por ex. de outros membros do Governo), ou até de outro, de que aquele dependa (por ex. de deputados).
O lugar apropriado para enunciar e punir estes impedimentos deontológicos não é, porém, a lei, mas sim os códigos de conduta internos de cada órgão (governos, câmaras municipais, Assembleia da República, etc.),a títulço de "responsabilidade ética".

Adenda
Não acompanho o Presidente da República, quando este defende que basta mexer na referida norma do CPA. Primeiro, os impedimentos legais nunca podem ir além do mínimo necessário; segundo, na atual situação todos os partidos de oposição preferem explorar a indefinição legal para zurzir no Governo. Por isso, defendo que, independemente de proposta legislativa, o Governo deveria - quanto antes, melhor -, "matar" a questão por via de uma aditamento ao seu próprio código de conduta.