1. A Assembleia da República aprovou recentemente uma lei para a manutenção da farmácia do Hospital de Loures, com base numa iniciativa externa de cidadãos interessados, aumentando o número de leis oriundas de iniciativas legislativas dos cidadãos, previstas na Constituição e e reguladas por uma lei de 2003 (revista em 2016).
Independentemente da discussão sobre o mérito político deste caso concreto (que, a meu ver, não é conviencente), ele testemunha a vitalidade da "iniciativa legislativa popular" entre nós.
2. De facto, numa democracia representativa o papel político dos cidadãos não tem de limitar-se às eleições e, ocasionalmente, ao voto nos referendos, quando estes têm lugar. Há também as variadas manifestações da "democracia participativa", pelas quais os cidadãos contribuem para a tomada de decisões das instituições políticas.
Todas elas visam envolver os cidadãos na gestão da "coisa pública" e na definição da agenda política e combater o tendencial "fechamento" do sistema político sobre os seus próprios agentes.
3. Entre elas avulta justamente a iniciativa legislativa dos cidadãos (ILP), pela qual um certo número mínimo de cidadãos (20 000) pode apresentar à AR uma proposta de lei, que o parlamento tem de votar, podendo assim tornar-se lei da República.
Sucede que a lei que regula essa instituição (Lei nº 17/2003, revista em 2016) é um tanto limitativa quanto aos assuntos que podem ser objeto de ILP, proibindo, por exemplo, que ela verse as matérias de reserva absoluta da AR, que abrangem os mais importantes temas legislativos, como, por exemplo, as leis eleitorais. Penso que não há justificação para tal restrição.
Por isso, é de sufragar o projeto do deputado independente, Trigo Pereira, no sentido de alterar a lei, ampliando o âmbito da ILP.
4. É evidente que, frequentemente, tanto a ILP como as demais modalidades de democracia participativa são acionadas por "grupos de interesse" e descambam para a defesa de interesses corporativos ou locais, como sucede a relativa à farmácia do hospital de Loures.
Embora não conheça nenhum estudo sobre a prática da instituição, tenho a impressão que isso sucede a maior parte das vezes. Essa contrariedade não anula, porém, as virtudes da instituição, sendo um modesto preço a pagar. No final, aliás, quem decide soberanamente é a AR, como titular supremo do poder legislativo, rejeitando ou validando a iniciativa externa, com ou sem alterações. A democracia representativa prevalece sempre, como deve ser.