sábado, 2 de maio de 2020

Pandemia (19): Faz sentido invocar deveres cívicos entre nós?

1. A Resolução do Conselho de Ministros de 30 de abril, que declara a "situação de calamidade pública", ao abrigo da Lei de Bases da Proteção Civil (mas não só), procede também à enunciação do "dever cívico" de cumprimento de uma regra geral de recolhimento e de distanciamento social para ajudar a travar a pandemia.
Contrariamente a outros comentadores, não ridicularizo nem desvalorizo os deveres cívicos. Há países onde a "cultura cívica" (título de um célebre livro dos politólogos Almond & Verba, de 1989) constitui uma base sólida da coesão política e integração política dos cidadãos. A própria Constituição usa, entre nós, a noção de dever cívico em relação ao dever de voto.

2. É evidente, porém, que não criando obrigações jurídicas, a inobservância de um dever cívico não pode ser sancionada. Apesar disso, não são normas de conduta social irrelevantes. Apelam para a responsabilidade cívica individual e coletiva e permitem chamar cada cidadão à "prestação de contas" perante os outros. Entre outras coisas, permitem o naming and shaming público dos prevaricadores.
A minha dúvida tem a ver com a eficácia de tais normas numa cultura política como a nossa, caracterizada, em regra, por um generalizado défice de responsabilidade cívica. Como mostra o lamentável exemplo do dever cívico de voto, os portugueses, por norma, ligam pouco a tais apelos. E embora nesta crise tenha havido um elevado grau de adesão voluntária aos constrangimentos definidos (em que o medo não terá sido irrelevante...), o verdadeiro teste está para vir, agora que a taxa de contágio diminuiu, que as medidas impositivas vão ser relativamente relaxadas e que... o verão não tarda aí.
Oxalá me engane, mas cético estou.

Adenda
Um leitor pergunta porque é que temos um baixo nível de responsabilidade cívica, em comparação com os países nórdicos, por exemplo. A meu ver, há duas razões principais para essa diferença: porque não compartilhamos da ética protestante, como eles, e porque, fora o pequeno período da I República, nunca fizemos da educação cívica uma prioridade, nem escolar nem política. Dois exemplos comprometedores: o vandalismo nos espaços e equipamentos públicos e a banalização dos atestados de doença.