sábado, 2 de maio de 2020

Pandemia (20): O risco da insegurança jurídica

1. Está aberta a discussão pública quanto à legitimidade das medidas restritivas das liberdade individual que se mantêm em vigor depois do fim do estado de emergência (que é hoje), por força da Resolução do Conselho de MInistros nº 33-A/2020, de 30 de abril.
À partida, importa dizer que a referida RCM, sendo um diploma governamental de natureza administrativa, não pode, só por si, restringir direitos fundamentais, só podendo aplicar restrições já estabelecidas em lei anterior, como é caso da Lei de Bases da Proteção Civil, que prevê a declaração da situação de calamidade, a qual compreende a restrição a várias liberdades, nomeadamente da liberdade de circulação, incluindo "cercas sanitárias". Todavia, a referida Resolaução, apesar do seu título, não se limita a aplicar essas restrições, abarcando outras, cuja base legal nem sempre é indicada, como sucede com as da liberdade de reunião ou da liberdade de culto.
Teria sido conveniente que a Resolução incluísse uma tabela com o elenco de todas as restrições nela estabelecidas e da base legal de cada uma delas. Evitar-se-ia assim alguma incerteza e insegurança  jurídica, que neste momento não é nada aconselhável. A intromissão administrativa especial nas liberdades individuais precisa sempre de ter fundamentos jurídicos "à prova de bala".

2. Recordando as regras constitucionais, a lesão administrativa de direitos fundamentais não é constitucionalmente possível, fora de estado de sítio ou de emergência, nos seguintes termos:
    a) quando estiver excluída pela própria Constituição (por exemplo, censura à imprensa, entrada sem autorização no domicílio alheio, intromissão nas comunicações privadas);
    b) quando se traduzir na privação e não somente na restrição de direitos, ou seja, quando lesar o conteúdo essencial de um direito (como, por exemplo, o confinamento domiciliário compulsivo);
   c) quando não for devidamente justificada por motivo de interesse público ou quando for desnecessária ou desproporcionada;
   d) quando não for determinada ou autorizada por lei da AR ou por decreto-lei autorizado pela AR;
   e) quando a decisão administrativa não indicar o fundamento legal, mesmo que este exista.
Basta uma dessas situações para faltar a necessária base constitucional.

3. Note-se que que entre os fundamentos legais da restrição de direitos não pode contar-se o Decreto-Lei no 200/2020, de 1 de maio, que «altera as medidas excecionais e temporárias relativas à pandemia da doença COVID-19», porque não foi emitido sob autorização da AR.
Por isso, ou as restrições nele estabelecidas (obrigação de uso de máscaras ou medição obrigatória de temperatura corporal) estão previstas em leis anteriores, que não são indicadas, ou também não têm fundamento constitucional.