segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Memórias acidentais (11): Gratidão

1. Registo a publicação da coletânea da poesia de Joaquim Namorado (1914-1986), um dos expoentes do "neorrealismo" literário e artístico que, desde os anos 40, sob influência marxista, pautou a criação dos autores e artistas identificados com a luta política e social antifascista, tendo sido diretor (primeiro de facto e depois de direito) da revista Vértice, publicada em Coimbra, que foi um dos grandes veículos do movimento, nas difíceis condições da censura prévia e de perseguição política do "Estado Novo".
O combate cultural foi uma frente essencial na resistência, pública e clandestina, à ditadura.

2. Tal como muitos estudantes e jovens académicos desses anos, tive o privilégio de privar com Joaquim Namorado, especialmente nos encontros quase diários no café Tropical (à Praça da República) e nas reuniões semanais da redação da Vértice, que a seu convite integrei a partir de 1969.
Para além da suas firmes convicções políticas e ideológicas como militante comunista que era (o que lhe valera uma prisão e a interdição de ensinar) e da sua crença inabalável na emancipação humana, o que impressionava em Joaquim Namorado era vastidão do seu conhecimento da literatura e da arte, a sua coragem intelectual, a sua firmeza de caráter e a sua integridade moral.

3. Na Coimbra dos anos 60 e 70, sob a ditadura, até 1974, a minha geração, tal como outras antes e depois, deve a Joaquim Namorado (assim como a Orlando de Carvalho, um católico progressista que compartilhava essas mesmas virtudes), não somente uma sólida amizade, mas também um incentivo e um apoio que foram decisivos na nossa formação pessoal, intelectual e política. A reedição da sua poesia é um boa oportunidade para o recordar.
E nem as diferenças de opinião da altura (por exemplo, quanto à União Soviética) nem a minha posterior evolução doutrinal e política permitem obnubilar a dívida de gratidão para com personalidades como Joaquim Namorado.