quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Corporativismo (18): "Ultra vires"

1. A Ordem dos Advogados vai deliberar sobre a convocação de um referendo acerca do regime de segurança social dos advogados, nomeadamente quanto à opção entre manter o regime da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e mudar para o regime geral da segurança social.

Esta iniciativa enfrenta, porém, vários problemas
        - em primeiro lugar, a OA não pode colocar a referendo a modificação do regime da segurança social dos advogados, que está fixado na lei; só o Estado pode mudar a lei, pelo que só o Estado poderia convocar um referendo para esse efeito - que, aliás, não poderia restringir-se aos advogados; 
        - em  segundo lugar, a OA só pode convocar referendos sobre as questões da sua competência; ora, não vejo onde está o poder legal da OA para decidir, ou sequer pronunciar-se, sobre o regime de segurança social dos advogados, cuja definição cabe exclusivamente ao Estado;
       - por último, os referendos não servem para optar entre duas soluções alternativas, mas sim para respostas de sim ou não a uma medida a adotar por quem promove o referendo.   

Há aqui, portanto, barreiras jurídicas inultrapassáveis para a convocação do dito referendo pela OA.

2. No atual regime jurídico das ordens profissionais, diferentemente do que sucedia no regime corporativo do"Estado Novo", as ordens profissionais só têm funções de representação da profissão e de autorregulação e de autodisciplina profissional, pelo que deixaram de ter poderes quanto à segurança social dos seus membros (ou sobre relações laborais, como tinham antes). O artigo dos Estatutos da OA sobre o regime de segurança social é um resquício descabido de tempos idos há mais de 40 anos.

Por isso, se o Conselho de Jurisdição da Ordem não vetar a convocação do referendo, como se impõe, incumbe ao Ministério Público promover a pertinente ação judicial de anulação, antecedida da necessária medida cautelar de suspensão da sua execução.

Adenda
Na verdade, as coisas são mais complicadas, pois desde sempre defendo que o regime especial de segurança social dos advogados e solicitadores (CPAS) não tem base constitucional, quer por derrogar o princípio do sistema público único de segurança social constitucionalmente estabelecido, quer por atentar contra o princípio constitucional da igualdade, conferindo a essas duas profissões o privilégio de gerirem o seu próprio sistema privativo de segurança social.

Adenda (2)
Um leitor sugere que o referendo poderia ser convocado somente a título consultivo, com o fim de permitir à OA defender junto do Governo a solução que vier a obter vencimento. Só que para isso seria necessário admitir que os referendos podem ser convocados por quem não tem poder para decidir a questão colocada a referendo e com efeitos meramente consultivos (em ambos os casos ao arrepio das pertinentes regras constitucionais) e que as ordens profissionais podem tomar posição sobre o regime de segurança social sobre os seus membros - o que eu contesto, pela simples razão de que isso não cabe nas suas atribuições legais. Se o Governo quiser equacionar (como deve) a extinção da CPAS e a integração dos advogados e solicitadores no regime geral, deve ouvir obviamente TODOS os interessados (e não somente os advogados) através da CPAS (e não através da OA).