1. A contestação de dois regulamentos de autoridades reguladoras independentes - o Regulamento da ANACOM sobre o concurso de redes de 5G, contestado pelos operadores, e o Regulamento da ERS (Entidade Reguladora da Saúde) sobre a transferência de doentes entre unidades de saúde, contestado pelo próprio Governo - veio dar expressão pública a um conflito, até agora latente, entre a competência política do Governo e a competência regulamentar das autoridades reguladoras independentes (ARI).
A questão subjacente é a de saber se a atuação destas excede a esfera das suas atribuições legais.
2. No "Estado regulador" contemporâneo, em que a intervenção económica do Estado se centra na correção das "falhas de mercado" e na defesa da concorrência, por via legislativa e administrativa, a execução dessas tarefas e a aplicação das correspondentes medidas não cabem em geral ao Governo e à administração direta ou indireta do Estado dependente daquele, mas sim a autoridades reguladoras independentes, que não respondem perante o Governo e que não estão sujeitas nem às suas instruções ou orientações nem à sua tutela ou controlo. Isso é assim nos Estados Unidos desde o princípio do Estado regulador, há quase um século (anos 30 do século passado) e posteriormente na Europa (desde os anos 80).
O problema que daí resulta é o de saber quais são as fronteiras entre o poder legislativ0 e a função política do Governo, por um lado, e os poderes das autoridades reguladoras independentes, por outro lado.
3. Se há coisas que a independência das autoridades independentes não pode pôr em causa, elas são, por um lado, o princípio da legalidade inerente ao Estado de direito e, por outro lado, a reserva governamental da função política, inerente à responsabilidade democrática. Constitucionalmente, é tão importante a separação entre o poder legislativo e o poder executivo, como a separação, dentro do último, entre a função política e a função administrativa. Ora, as autoridades reguladoras independentes só podem ter funções administrativas, de índole essencialmente técnica, estando, portanto, subordinadas ao poder legislativo e à função política do Governo.
Uma vez que as autoridades reguladoras independentes não gozam de legitimidade democrática própria e não são responsáveis politicamente, nem perante o Governo nem perante o Parlamento, torna-se óbvio que elas não podem tomar medidas que dependem do legislador ou da decisão política governamental.
Por mais amplas que sejam as cláusulas da lei ou dos seus estatutos, estes preceitos têm de ser interpretados em conformidade com a Constituição. Numa democracia representativa, instituções "não maioritárias" têm de ser politicamente neutras na sua ação, não podendo tomar decisões que envolvam opções de política económica ou outra.
4. Por conseguinte, a autonomia regulamentar das autoridades reguladoras não pode invadir, antes tem de respeitar, a reserva de lei do legislador democrático e a reserva de decisão política do governo democrático, que respondem ambos, direta ou indiretamente, perante a coletividade política.
Nesse quadro, salvo delegação ou autorização expressa, as ARI não podem criar ou alterar direitos e obrigações dos particulares nem da Administração (que caem na esfera do legislador) nem podem versar sobre a organização dos respetivos mercados (que cai na esfera da política económica sectorial), pelo que o seu poder regulamentar se limita a dispor sobre o exercício dos seus próprios poderes de supervisão e de sanção administrativa que a lei lhes confere e sobre os procedimentos correspondentes.
Fora disso, salvo credencial legislativa específica, as autoridades reguladoras atuam ultra vires, invadindo ou infringindo a esfera de atribuições do legislador e/ou do Governo. É o que me parece ter sucedido nos dois casos acima referidos.