terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O que o Presidente não deve fazer (23): Uma "regra" cheia de buracos

1. Têm toda a razão todos os que entendem - por exemplo, AQUI e AQUI - que o PR extrapolou os seus poderes constitucionais no caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Desta vez, foi demasiado ostensivo.

Fê-lo quando se pronunciou publicamente sobre o destino do Serviço, que é obviamente uma exclusiva competência governamental (como o próprio MRS veio reconhecer, depois da ingerência consumada...); voltou a fazê-lo quando recebeu o comandante da PSP e lhe deu palco público para defesa da extinção do Serviço, tanto mais que os dirigentes dos corpos adminstrativos só respondem perante o Governo e é este que responde pela Administração Pública perante o PR, sendo descabido serem chamados diretamente a Belém. 

Estamos, portanto, perante uma ação do PR caraterizadamente fora do quadro dos seus poderes constitucionais.

2. O Primeiro-Ministro veio declarar que o PR «em regra» respeita «escrupulosamente» a separação de poderes. Mas é manifestamente uma "regra" com demasiadas exceções: só nesta série sobre "O que o Presidente não deve fazer", aqui no Causa Nossa, já conto nada menos de 23 casos, ao longo destes cinco anos -, sem ter sido exaustivo.

A verdade é que, dada a sua repetição, não se trata já de exceções ocasionais e acidentais, mas sim de um padrão de conduta presidencial, forçando os seus poderes constitucionais, em favor de uma espécie de tutela política sobre o Governo, o que não pode deixar de ser motivo de funda preocupação. É a autonomia constitucional do Governo na condução das suas políticas e na direção da Administração Pública, sob exclusiva responsabilidade política perante a AR, que é posta em causa.

3. Só é estranho que seja o PS a mostrar uma inesperada complacência política perante esta tentação presidencialista, uma vez que se trata do partido que tradicionalmente mais zeloso tem sido numa estrita delimitação dos poderes presidenciais e na autonomia política do Governo, desde o confronto de Mário Soares com o Presidente Eanes no início do regime constitucional de 1976, que culminou na revisão constitucional de 1982 e no fim da conflituosa responsabilidade política dos governos perante o PR. 

Ora, nem tudo pode ser justificado pela vulnerablidade política dos governos minoritários e pelo apoio oficioso de conveniência ao candidato presidencial incumbente...

Adenda
Um leitor objeta que o PR tem sido o "amparo" do Governo do PS e que, ao funcionar como "tutor do Governo" (citando-me), ele compartilha também a responsabilidade política pela ação governamental, dificultanto a tarefa da oposição. Compreendo o argumento, observando, porém, que o facto de o PR ser o "supervisor" do sistema político, como tenho defendido, não o autoriza a substituir-se à oposição e a suprir a inépcia e a desorientação desta, como se tem visto na conduta errática do PSD. O PR tem o dever constitucional de permitir ao Governo governar e à oposição opor-se. Mas, nem "amparo" do Governo nem suplente da oposição.