1. Tendo voltado à agenda política, por iniciativa do governo do PS, a questão da descentralização regional no Continente (ou "regionalização"), mais de duas décadas sobre a rejeição da sua primeira versão no referendo de 1998, era inevitável que a questão do referendo regional, introduzido somente na revisão constitucional de 1997, viesse a ser de novo sujeita a debate público.
O que era menos esperado é que a abertura desse debate coubesse à nova presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, a socialista Luísa Salgueiro (presidente da CM de Matosinhos), a qual, embora sem pôr em causa a necessidade de referendo, imposto pela Constituição, avançou com uma proposta pública de alteração do regime constitucional do referendo quanto a dois pontos precisos:
- sujeitar a referendo somente o mapa regional geral, eliminando a segunda pergunta, relativa a cada área regional em especial;
- suprimir o requisito do quorum de 50% de participação no referendo como condição de vinculatividade da deliberação popular.
Embora na área do PS esta proposta não tenha suscitado comentários públicos, o mesmo não sucedeu no âmbito do PSD, como decorre desta recente peça noticiosa. Parece evidente que as ideias da presidente da ANMP não são consensuais à partida.
2. Das duas referidas propostas, a que faz mais sentido é a segunda, visto que a eventual exigência de participação de mais de metade dos eleitores no território nacional no referendo poderia vetar mais uma vez a criação das autarquias regionais, mesmo que o "sim" ganhasse por confortável maioria.
Note-se que o art. 256º da CRP não é líquido sobre essa questão. Se o nº 3 desse preceito constitucional remete para o regime geral do referendo (art. 115º), onde se inclui o requisito da participação de 50%, já o nº 1 daquele mesmo preceito apenas exige o «(...) voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta (...)», sem referir um quorum mínimo. Todavia, parece evidente que não pode convocar-se o referendo sem clarificar esta dúvida constitucional e ela não pode ser resolvida por consulta prévia ao TC.
Com efeito, nunca se conseguiu o referido quorum em nenhum dos referendos nacionais até agora realizados, nomeadamente no citado referendo regional de 1998, apesar da polémica a que deu lugar. Não há nenhuma razão para acreditar que desta vez seria diferente, tanto mais que a abstenção eleitoral cresceu desde então. A inclusão no recenseamento interno de muitos eleitores ausentes no estrangeiro (mas co morada indicada em Portugal) aumenta artificialmente a abstenção (calcula-se que em cerca de 10pp).
Por isso, realizar o referendo sem afastar claramente essa condição é matar deliberadamente a regionalização à partida.
3. Ora, independentemente de se considerar exagerada essa condição para qualquer referendo - o que levaria a reduzi-la, como proponho (por exemplo, para 40%) -, penso que há bons argumentos para prescindir de qualquer exigência de participação mínima no caso deste referendo específico.
São eles os seguintes:
- trata-se do único referendo obrigatório sobre a implementação de uma reforma institucional prevista desde o início na CRP, cuja ausência configura uma "inconstitucionalidade por omissão", ainda por cima numa questão-chave da arquitetura do Estado territorialmente descentralizado preconizado na Constituição;
- trata-se do único caso em que a execução de uma lei da AR (aliás, uma "lei orgânica" aprovada por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções) fica dependente da sua subsequente ratificação em referendo, à revelia da lógica da democracia representativa;
- este referendo não é sobre a regionalização em si mesma (pois esta está determinada pela Constituição), nem sequer sobre a lei-quadro em geral (atribuições, organização, etc.), mas sim somente sobre o mapa das autarquias regionais previamente definidas na referida lei;
- uma vez que os residentes no estrangeiro não participam neste referendo, não se compreende que nele interfiram indiretamente, só pelo facto de muitos manterem indevidamente a sua morada em Portugal.
Por conseguinte, não faz nenhum sentido que um referendo especial como este fique sujeito ao regime geral do referendo e que a vontade de uma maioria absoluta da AR e dos cidadãos votantes na consulta popular seja aniquilada pelos abstencionistas, que, por definição, não querem participar na decisão. Neste caso, a abstenção não pode ser contada como "não".
É importante, por isso, que os partidos que apoiam a descentralização regional se pronunciem claramente e atempadamente sobre esta decisiva questão.