Não tenho dúvidas da conveniência de uma tal lei, para autorizar restrições especiais a algumas liberdades individuais (como a liberdade de circulação, a liberdade de empresa, a liberdade de trabalho, a liberdade de reunião, a liberdade culto, etc.) e para impor certas obrigações excecionais (obrigação de uso de máscara, de testes sanitários, etc.), mas entendo que, sem uma mudança na Constituição, algumas medidas adotadas durante a recente pandemia, como a quarentena, o confinamento domiciliário ou o recolher obrigatório, só podem ser decretadas em estado de sítio ou estado de emergência, por se tratar de casos de verdadeira suspensão ou privação de direitos, e não da sua simples restrição, a qual não permite lesar o "núcleo essencial" dos direitos fundamentais afetadas, como ocorre nos referidos casos.
2. Houve quem, durante a pandemia, tentasse justificar constitucionalmente tais medidas, invocando a necessidade de proteger o direito à saúde de terceiros, também garantido na Constituição.
Todavia, tal como ensinam os constitucionalistas, um eventual conflito de direitos (entre o direito à saúde e o direito à liberdade pessoal) só poderia justificar a restrição de ambos, não a privação de um deles em benefício do outro, tanto mais que a Constituição cuida de enunciar explicitamente os casos excecionais de privação do direito à liberdade além da pena de prisão e da prisão preventiva (CRP, art. 27º), entre os quais não se conta o direito à saúde, o qual obviamente não pode ser acrescentado por suposta analogia. Foi este, aliás, o entendimento das decisões judiciais que concederam o habeas corpus em várias situações de quarentena fora de estado de emergência, por detenção infundada.
Por conseguinte, tal como tenho defendido várias vezes (por último, AQUI), a tal lei de emergência sanitária ficará aquém do necessário sem uma prévia revisão constitucional.