domingo, 3 de abril de 2022

Eleições: Propostas votadas ao fracasso

1. No Jornal de Notícias de hoje (versão eletrónica reservada aos assinantes), o investigador Luís Humberto Teixeira calcula que nas eleições parlamentares de 30 de janeiro passado aumentou muito o número de votos desperdiçados, ou seja, os votos que não contam para eleger deputados, afetando sobretudo os partidos com menor representação parlamentar (gráfico à esquerda, curva vermelha).

Isso é consequência da existência de vários círculos eleitorais de tamanho reduzido (a que cabem poucos deputados), onde o "limiar de eleição" é elevado e onde, portanto, somente os dois maiores partidos conseguem eleger deputados. Dado o grande número de voto desperdiçados, o "preço" de cada deputado (em número de votos) nesses círculos é muito inferior aos círculos maiores, onde há maior proporcionalidade e menor perda de votos (como mostra a coluna à direita).

Por conseguinte, a atual divisão de círculos eleitorais gera o desperdício de demasiados votos e uma grande desigualdade do grau de proporcionalidade nos diferentes círculos.

2. Para corrigir esta situação, o autor aventa três soluções: (i) um círculo eleitoral único, como nas eleições regionais da Madeira; (ii) um círculo nacional de "compensação", ou seja, de recuperação dos votos não aproveitados nos círculos territoriais, como nas eleições regionais dos Açores; (iii) aumentar o tamanho dos círculos eleitorais, substituindo no Continente os 18 círculos de base distrital, por cinco círculos de base regional (NUTS II).

No entanto, além de a primeira hipótese ser manifestamente inconstitucional - pois a CRP prescreve a existência de uma pluralidade de círculos territoriais -, todas elas, quando aplicadas à eleição dos 230 deputados da AR, iriam reduzir excessivamente o limiar eleitoral e aumentar exponencialmente o grau de proporcionalidade do sistema, provocando uma fragmentação adicional da representação parlamentar e inviabilizando vitórias parlamentares robustas do partido mais votado, eliminado o atual "prémio de vitória", ou seja, a "majoração" de deputados do partido vencedor. 

Por isso, nenhuma delas me parece politicamente aceitável pelos partidos de governo (PS e PSD), de cujo voto depende qualquer mudança da lei eleitoral.

3. Como já tenho defendido várias vezes, entendo que se justificam as seguintes obras no sistema eleitoral, quanto aos círculos eleitorais (deixando de lado outros aspetos):

    - reduzir a atual assimetria dos círculos (2 deputados em Portalegre e 48 em Lisboa!), não apenas agregando os círculos mais pequenos, mas também dividindo os maiores, de modo a atenuar substancialmente as desigualdades acima referidas, sem, porém, reduzir o atual limiar médio de eleição parlamentar, nem aumentar o grau de proporcionalidade global do sistema;

   - criar um círculo eleitoral nacional sobreposto de tamanho razoável, mas não excessivamente grande (elegendo à volta de 1/10 dos deputados), em que contariam todos os votos entrados nos nos círculos territoriais (e não somente os votos desperdiçados), assim valorizando tendencialmente os votos de todos os cidadãos em partidos de dimensão minimamente relevante, sem, todavia, aumentar o grau de proporcionalidade. 

Não vale a pena congeminar propostas de alteração do sistema eleitoral que aumentem a fragmentação parlamentar e afetem a governabilidade, pois estão votadas ao fracasso - e a meu ver, bem.

[Alterada a rubrica do post]

Adenda
Um leitor objeta, com toda a razão, que haverá sempre votos desperdiçados, que não contam para nada, nos partidos de reduzida expressão eleitoral. Todavia, pode e deve (i) reduzir-se a dimesão do desperdício de votos e (ii) dar-se relevância aos votos em partidos de dimensão eleitoral minimamente relevante a nivel nacional, onde quer que sejam emitidos. É uma questão de igualdade política.

Adenda 2
Torna-se evidente, nas minhas propostas acima, que não sou partidário da importação do sistema eleitoral alemão - segundo o qual cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominais (por maioria relativa), os quais, porém, entram depois na repartição proporcional dos deputados ao nível do círculos plurinominais "regionais" de que aqueles são parte -, que considero inaplicável entre nós. Felizmente, o PS deixou de se comprometer com ele no seu último programa eleitoral.

Adenda 3
Um leitor objeta que as minhas propostas de alteração ao sistema eleitoral «estão exatamente tão votadas ao fracasso como todas as outras, dado que os partidos dominantes (PS e PSD) têm fortes sistemas de poderes locais - concelhias e distritais - que não aceitarão diluir-se». Não sou dessa opinião: penso que os dois partidos não podem continuar a assistir ao aumento do número de deputados em Lisboa e no Porto, que ajuda a fragmentar a representação parlamentar, e não podem dividir os círculos grandes, sem ao mesmo tempo concentrar os mais pequenos, para terem uma justificação. Em todo o caso, as minhas propostas, exequíveis ou não, parecem-me mais razoáveis do que as outras, porque não subvertem o atual sistema eleitoral.