quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Corporativismo (40): Nova lei das ordens profissionais em questão

1. Fez bem o Presidente da República em pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, dadas as objeções suscitadas quer pelas ordens quer no debate parlamentar sobre ela. 

De resto, o PR nem sequer tem de pedir ao TC uma pronúncia de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização sucessiva, bastando invocar dúvidas relevantes, mesmo que as não subscreva, para obter a clarificação da questão. Tal é uma das funções da fiscalização preventiva, em prol da segurança jurídica.

2. Penso, porém, que o PR não tem razão quanto à sua principal objeção à lei, que é a de um suposto "princípio de autorregulação" das ordens profissionais.

Ora, importa dizê-lo à partida, não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional. Trata-se sempre de decisões discricionárias do Estado, que aliás precisam de fundamentação, e que são sempre reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa na lei), sem prejuízo da tutela estadual, por se tratar de entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

3. Quanto às funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem sempre originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei

Não existe nenhum direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais.

4. Um dos fatores essenciais da questão, que a nota presidencial ao TC omite, é que as ordens profissionais não são somente entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (um enorme privilégio das profissões "ordenadas"), o que gera o risco - que a prática frequentemente comprova -, de as ordens enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos que concomitantemente prosseguem e em prejuízo dos utentes e do interesse público. O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós. 

Este fator pode justificar perfeitamente quer a imposição de um provedor dos direitos dos clientes quer a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja nomeação, aliás, a lei confere às próprias ordens e não a entidades estranhas, salvaguardando, portanto (a meu ver, excessivamente...), a autonomia das ordens.

Adenda
Um leitor pergunta onde está o «privilégio» de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros. Primeiro, elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória e dispõem de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), ao passo que as demais profissões têm de recorrer a associações voluntárias e, por vezes concorrentes, e dependem das quotas dos seus membros. Uma diferença abissal, violando o princípio da igualdade. Em segundo lugar,  num Estado de direito liberal, não há nenhum fundamento constitucional para que a defesa de interesses particulares caiba a entidades públicas, como são as ordens. Por isso, diferentemente do que tendia a admitir há 30 anos, hoje defendo que a função de representação e defesa profissional das ordens não tem cabimento constitucional. Eis uma questão constitucional de fundo, que não foi suscitada pelo PR. É pena!

Adenda 2
Um leitor objeta que o conselho de supervisão não é compostos somente por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens, pois inclui membros cooptados, o que viola o princípio democrático. Discordo: o princípio democrático só vale naturalmente para os órgãos de governo das ordens (conselho, bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado. De resto, uma esmagadora maioria dos seus membros (80%) são designados pelos órgãos eletivos das ordens e somente 20% são cooptados, o que daria para preencher o requisito democrático, se se entendesse que ele era aplicável também aqui.