quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Não dá para entender (30): Deriva corporativista

1. Depois de, ao longo destas décadas, ter sido campeão na proliferação e banalização das ordens profissionais (até há uma Ordem dos Economistas!), o PS vai mais longe, propondo de novo ressuscitar a Casa do Douro como "associação pública", ou seja, como entidade de representação profissional oficial, unicitária e obrigatória da viticultura da região demarcada do Douro, regressando a 1932, nos primórdios do corporativismo do Estado Novo, e ao arrepio do modelo de autorregulação interprofissioal vigente, com base em associações profissionais livres, aliás comum a todas as regiões demarcadas.

É evidente que, para ser congruente e respeitar o princípio da igualdade, o PS deveria propor também a recriação do antigo Grémio dos Exportadores e restaurar o modelo corporativo nas demais regiões vinícolas. Como o não faz, torna-se evidente que a recriação da Casa do Douro como organismo oficial obedece a uma motivação puramente regionalista e oportunista.

2. Aprofundando a minha posição anticorporativista, venho defendendo nos últimos anos (por exempo, AQUI e AQUI) que a representação oficial de certas profissões não é compatível com a democracia liberal, baseada na liberdade e no pluralismo de associação, na separação entre interesse público e interesses privados e na exclusiva dedicação da Administração pública à defesa do interesse público.

Mesmo não indo tão longe, creio ser consensual a ideia de que o monopólio de representação profissonal oficial só se pode justificar, caso ela seja imprescindível ou pelo menos necessária para o desempenho das tarefas públicas confiadas pelo Estado às entidades profissionais, no quadro da autorregulação e autodisciplina profissional, como se tem entendido, até agora, ser o caso das ordens profissionais.

É certo que, para tentar contornar o chumbo do Tribunal Constitucional a uma anterior tentativa de  recriação da Casa do Douro como entidade pública associativa, a projeto do PS entrega-lhe agora o desempenho de algumas tarefas públicas, como o registo oficial dos viticultores e o respetivo cadastro predial, expropriadas ao Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro (IVDP), mas não se vê em que é a execução de tais tarefas puramente burocráticas exige a representação oficial, unicitária e obrigatória dos viticultores do Douro. Não existe nenhuma correlação orgânica entre as duas coisas.

A suposta causa não justifica a consequência.

3. Independentemente da questão constitucional, não vejo como é que politicamente esta deriva corporativista do PS pode ser compatível com as suas próprias fontes doutrinárias como partido social-democrata, designadamente o liberalismo, o republicanismo, a democracia e os direitos sociais. 

Nenhuma dessas fontes legitima a opção corporativista e várias delas a contrariam. Numa democracia liberal e republicana, a representação profissional releva da liberdade de associação e o Estado cuida exclusivamente do interesse público e não de interesses de grupo, por mais politicamente relevantes que estes sejam.