quinta-feira, 16 de março de 2023

Corporativismo (42): Alhos e bugalhos

1. Não tem nenhuma razão o advogado João Correia, quando acusa de inconstitucional a nova lei das ordens profissionais, no que respeita à Ordem dos Advogados, por alegadamente ofender o preceito constitucional sobre a proteção do patrocínio forense.

A verdade, porém, é que a nova lei não afeta em nada as imunidades do mandato forense, que existem independentemente de os adogados estarem, ou não, organizados em corporação pública, o que, aliás, sucede em muitos países. O tal preceito constitucional é totalmente irrelevante para a reforma da OA, em consequência da nova lei, pelo que decidiu bem o Tribunal Constitucional ao ignorar essa questão.

Trata-se, pura e simplesmente, de misturar alhos com bugalhos.

2. Enquanto ordem profissional, com funções de representação oficial da profissão e de regulação e disciplina profissional (por delegação do Estado), a OA em nada se distingue das demais, incluindo compartilhar, e de forma agravada, dos três grandes vícios de todas elas, designadamente: 

   - privilegiar descaramente a sua função sindical de defesa de interesses profissionais, em prejuízo da sua missão pública de supervisão e disciplina profissional, claramente negligenciada; 

   - cultivar aplicadamente a tradicional pulsão "malthusiana", restringindo abusivamente a liberdade de entrada na profissão (como se mostrou recentemente com a notícia de reprovação de mais de 80% dos candidatos no exame de acesso à profissão!); 

   -  defender ciosamente o amplo monopólio profissional para a prática de "atos próprios dos advogados", que nada justifica sejam exclusivos deles e vedados a outros profissionais (salvo o patrocínio judiciário), sendo uma forma privilegiada de restrição da concorrência na prestação de serviços profissionais.

Por conseguinte, não existe o mínimo fundamento para excecionar a AO da reforma da lei-quadro das ordens profissionais (aliás, modesta). Pelo contrário!

Adenda
Seguindo uma regra comum na profissão, também João Correia tenta desligar a Ordem dos Advogados do corporativismo do chamado Estado Novo, invocando que ela foi criada antes da instituição do regime corporativo. Mas é tarefa votada ao fracasso: ela foi criada logo em 1926 pela Ditadura militar que deu origem ao Estado Novo e foi inequivocamente integrada na organização corporativa desde o seu início, em setembro de 1933, através do diploma sobre os "sindicatos nacionais" (que abrangia os trabalhadores por conta de outrem e as "profissões livres"), o qual estabelecia explicitamente que «os sindicatos nacionais dos advogados, dos médicos e dos engenheiros podem adotar a denominação de "Ordens"». A função de representação e defesa profissional das ordens é de origem incontornavelmente corporativista. É feio tentar rever oportunisticamente a história.

Adenda 2
Acresce que os advogados (junto com os solicitadores) constituem o único caso de manutenção de um sistema privativo de segurança social de base profissional (a CPAS), aliás sem base constitucional, que é outro traço inequívoco do corporativismo "estado-novista".

Adenda 3
Nem de propósito para confirmar a persistência da memória corporativista na OA, vem a notícia de hoje, segundo a qual a respetiva Bastonária vai propor ao Governo a alteração do regime de segurança social dos advogados. Quando é que a OA se convence de que, como entidade pública administrativa que é, só pode atuar no âmbito das suas específicas atribuições legais e que entre elas não se conta, nem pode contar, a segurança social dos seus membros?