quarta-feira, 21 de junho de 2023

Corporativismo (47): Uma reforma assaz modesta...

 1. Há quem me atribua, indevidamente, a autoria intelectual da revisão do regime das ordens profissisonais e das profissões "ordenadas", mas seria hipocrisia negar que a minha luta de muitos anos contra  o "malthusianismo" e o protecionismo profissional protagonizados pelas ordens, restringindo profundamente, em proveito próprio, a entrada nessas profissões e a concorrência na prestação dos respetivos serviços, ajudou a criar condições para esta reforma e para a sua validação pelo Tribunal Constitucional.

Todavia, importa dizer que, a meu ver, e ao contrário da radical crítica das ordens, esta reforma peca por demasido modesta e por não atacar o cerne do problema

2. A "minha" reforma seria bastante mais profunda, e passaria pelos seguintes passos:

    - eliminação de várias da ordens e câmaras profissionais existentes, como as dos economistas, dos arquitetos, dos despachantes oficiais, do serviço social, onde não se verifica nenhuma "falha de mercado" qualificada que justifique a prerrogativa da autorregulação profissional oficial, através de uma associação pública obrigatória, em negação absoluta da liberdade de associação;

   - supressão da função de representação e defesa profissional da ordens, reduzindo-as a conselhos de supervisão e disciplina profisssional, por entender que a mistura das duas funções constitui um casamento contra natura, dado o tendencial conflito entre a defesa do interesse público da disciplina da profisão e a defesa de interesses privativos de grupos profissionais, que numa democracia liberal deve caber a associações privadas;

    - extinção da função de defesa de interesse públicos gerais conferida a certas ordens, como a defesa do Estado de direito (Ordem dos Advogados) ou do SNS (Ordem dos Médicos), atribuições que, além de não terem a ver com a autorregulação profissional, permitem às ordens imiscuírem-se na esfera política, e passarem a atuar como agentes políticos, em violação do princípio fundamental da neutralidade e independência política da função reguladora no "Estado regulador" contemporâneo.

É certo que a reforma em curso corrige os principais abusos das ordens profissionais no que respeita à prestação de serviços profissionais, mas não elimina o privilégio corporativo conferido a certas profissões e o abcesso político em que as ordens se tornaram, tal como se apresentam entre nós. 

3. Acresce que a lei-quadro não foi feliz em algumas das soluções adotadas, designadamente quanto a duas.

A primeira consiste em ter mantido a romântica norma segundo a qual as ordens têm por primeira atribuição a defesa dos interesses dos destinatários dos respetivos serviços, o que, além de ser contraditório com a sua óbvia missão de representação e defesa dos interesses da respetiva profissão, constitui a base da ingerência das ordens na gestão dos serviços públicos, apesar de a lei não lhes dar poderes para tal.

A segunda solução errada da lei-quadro consiste na eleição direta dos membros do conselho de supervisão, incluindo os 40% de membros leigos. Para além de a eleição direta (por maioria ou proporcionalmente?) politizar indevidamente esse órgão com funções parajurisdicionais, não se vê como é que pessoas alheias à profissão, oriundas da academia, podem aceitar de bom grado integrar listas eleitorais concorrentes e submeterem-se a campanhas eleitorais.

Receio bem que esta inadvertida solução venha a criar sérias dificuldades à constituição desse órgão, que desempenha um papel chave na economia da nova lei.

Adenda
Um leitor pergunta se, perante este texto, os Ordens «se devem sentir aliviadas, por a lei não ter ido mais além». Claramente, o legislador preferiu enveredar por uma solução de compromisso, em vez de entrar em choque frontal com elas. Não enjeito o compromisso político alcançado, mas vou continuar a defender as minhas teses, tanto mais que receio que as principais ordens - as "suspeitas do costume" - não vão contribuir de bom grado para a boa execução desta reforma.

Adenda (2)
Como é que o órgao de supervisão deveria ser designado -, pergunta um leitor. A meu ver, deveria ser eleito, por maioria qualificada, pelo conselho representativo geral, o que lhe daria uma legitimidade reforçada, evitando os referidos males da eleição direta. Aliás, também não me parece bem a eleicão direta da direção executiva das ordens, a qual deveria ser eleita igualmente pelo conselho representativo, por maioria simples, e ficando responsável perante ele. A nível do sistema político nacional, também só elegemos diretamente o PR e a AR, não o Governo (muito menos os juízes...).

Adenda (3)
Aproveito para manifestar as minhas maiores reservas sobre o relativamente elevado montante da remuneração dos estágios profissionais proposto pelo Governo. Aprovando sem dúvida o fim dos estágios gratuitos, entendo, porém, que a remuneração monetária deve ter em conta que a melhor e mais valiosa contrapartida recebida pelos estagiários é a aprendizagem da prática da profissão. Receio bem que o montante fixado tenha um forte "efeito colateral" negativo, que é a redução da oferta de estágios, acabando por redundar numa importante barreira no acesso à profissão, contrariando um dos principais objetivos da reforma.