terça-feira, 19 de setembro de 2023

O que o Presidente não deve fazer (38): Um pernicioso equívoco

1. Este artigo, de pretensa legitimação do atual intervencionismo governativo do PR, constitui um exemplo claro dos equívocos a que pode conduzir uma leitura pouco cuidada do sistema de governo português numa chave "semipresidencialista" (que analisei e critiquei devidamente AQUI). Sucede que num Estado de direito constitucional, como o nosso, os poderes do PR são os definidos na Constituição (poder de nomeação de certos cargos públicos, poder de veto legislativo, poder de dissolução parlamentar, etc.), e não os que decorrem de um pré-conceito político sem base constitucional.

Ora, como tenho escrito muitas vezes, ao criticar os abusos de poder do PR, muitos sem precedentes entre nós, há duas coisas incontroversas à face da CRP (desde a revisão constitucional de 1982): (i) é ao Governo, sob direção do PM, que cabe a função governativa, sem nenhuma sujeição a orientações presidenciais; (ii) o Governo não é politicamente responsável perante o PR, pelo que não pode ser demitido por este por divergência política, mas somente perante a AR (e, naturalmente, perante a oposição e a opinião pública). 

Nenhuma pré-compreensão do sistema de governo pode prevalecer sobre estas duas regras constitucionais fundamentais.

2. Daqui decorre que não existe nenhum poder de superintendência nem de tutela política de Belém sobre São Bento, nem expresso nem implícito, pelo que não têm cabimento as incursões presidenciais que tenho apontado na esfera governativa, quer na definição presidencial de orientações para o Governo, quer na censura sobre os atos ou omissões governativas (salvo quando ponham em causa o "regular funcionamento das instituições", que cabe ao PR assegurar). A sobreposição e a confusão de poderes arrastam a indefinição da repartição de responsabilidades, que pode ser fatal ao funcionamento do sistema político.

O PR tem o poder de fiscalizar a observância das regras constitucionais e das obrigações institucionais do Governo, não a de definir ou de controlar as políticas governativas. A separação de poderes, esteio fundamental do moderno constitucionalismo, ainda conta.

Adenda
Um leitor objeta que a caracterização do nosso regime político como "semipresidencialismo" se generalizou desde 1976, pelo que considera «praticamente impossível abandoná-la». Já foi uma tese mais sufragada do que hoje, pelo menos entre os constitucionalistas, onde nunca foi pacífica, desde a revisão constitucional de 1982, como mostro no meu estudo acima referido. Acresce que uma coisa é usar essa controversa noção para qualificar, sem o devido rigor, o sistema de governo, outra é utilizá-la para defender poderes presidenciais sem base constitucional. Em vez de partir das soluções constitucionais para chegar à qualificação mais apropriada, parte-se de uma certa qualificação, apesar de, no mínimo, litigiosa, para dela deduzir soluções constitucionalmente inconsistentes. Chama-se a isso "conceitualismo", no seu pior...