quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Memórias acidentais (24): Sob a égide de Marx



1.
Só agora me foi dado conhecer o livro de Flamarion Maués, Livros que tomam partido (Lisboa, Parsifal, 2019), que é um estudo sobre a edição política em Portugal entre 1968 e 1980, ou seja, na fase final da ditadura do "Estado Novo" e nos primeiros anos da Revolução, que acompanhei de perto. 

Como não podia deixar de ser, lá consta um capítulo sobre a editorial Centelha, nascida em Coimbra em 1970, após a grande luta estudantil de 1969, cujo principal animador foi o estudante de direito, Alfredo Soveral Martins (que viria a ser docente da FDUC), a qual, entre outras linhas editoriais, foi responsável pela edição dos clássicos do marxismo, desde o início até aos anos 20 do século XX (Marx, Engels, Lénine, Rosa Luxemburgo), bem como de livros de análise marxista, desfeiteando a censura e a repressão do regime. 

Foi na Centelha que publiquei os meus dois primeiros livros: a Ordem jurídica do capitalismo (1973) e a edição de O Capital de Marx (1974), numa tradução conjunta com J. Teixeira Martins, com um estudo introdutório meu. Estranhamente, nenhuma dessas obras é referida no capítulo sobre a Centelha na citada monografia, apesar do natural impacto que a sua publicação teve na altura.

2. Como consta do respetivo prefácio, A Ordem jurídica do capitalismo é constituída por alguns capítulos da minha dissertação do "curso complementar" de Direito, uma espécie de mestrado da altura, apresentada três anos antes na Faculdade de Direito, onde eu era assistente da secção de "ciências jurídico-políticas".

Como se imagina, tratava-se de uma análise assumidamente marxista da ordem jurídica do capitalismo, como o júri da prova, presidida pelo próprio diretor da FDUC, se encarregou de anotar na respetiva ficha, a que mais tarde tive acesso. Honra lhe seja feita, esse orientação crítica da tese em nada afetou a sua aprovação.

O livro viria a ser reeditado várias vezes depois do 25 de Abril, sendo a quarta edição de 1987, e está hoje disponível na Internet. Apesar da sua ortodoxia marxista - que entretanto abandonei -, nunca o enjeitei, até porque ele se tornou um clássico da literatura de língua portuguesa sobre o tema.

3. Quanto à tradução de O Capital de Marx, de que não havia nenhuma edição em Portugal, ela obedeceu ao plano da Centelha de disponibilizar em língua portuguesa as obras clássicas do marxismo, de que O Capital é obra fundamental. Foi uma laboriosa tarefa, que consumiu infindas horas aos dois tradutores nos anos de 1972 e 1973, tanto mais que decidimos conjugar as duas versões que Marx deixou da obra, respetivamente em francês e em alemão, o que tornou a tradução muito mais exigente.

O 1º volume da Livro I da obra só foi publicado no início de 1974, quando eu já me encontrava, desde setembrto de 1973, em Londres, a preparar o doutoramento, na London School of Economics, portanto com muito menos disponibilidade. Por isso, com a ocorrência da revolução em abril desse ano e a nossa imediata entrega à ação política, os volumes seguintes já não foram publicados, apesar de J. Teixeira Martins ter completado a sua parte na tradução. Também não houve nova edição do 1º volume (entretanto também disponível na Internet). Por isso, curiosamente, a edição de O Capital é uma das vítimas da Revolução.

4. Importa recordar que o referido ativismo político-editorial em Coimbra (tal como em Lisboa e no Porto) foi favorecido pela agitação política nos últimos anos do "Estado Novo", decorrente da substituição de Salazar por Caetano e a relativa descompressão temporária da repressão que se seguiu, do reflexo do Maio de 1968 em França, da grande luta estudantil em Coimbra em 1969, bem como do Congresso da Oposição Democrática em Aveiro e da participação da oposição nas pseudoeleições desse mesmo ano, tudo confluindo na diversificação e no reforço da luta contra o regime, na oposição à guerra colonial, na solidariedade com o Vietname, na esperança suscitada pelo governo de Allende no Chile, etc.

Na caso especial de Coimbra, havia nessa altura na da Faculdade de Direito, sem paralelo em nenhuma outra Universidade, um grupo de professores e assistentes assumidamente de esquerda (Orlando de Carvalho, J. J. Gomes Canotilho, A. J. Avelãs Nunes, Aníbal Almeida e eu próprio, entre outros), todos acumulando com a redação da revista Vértice, órgão do movimento neorrealista desde o início, também de clara inspiração marxista - uma espécie de "escola marxista de Coimbra", cujo registo bibliográfico está por fazer. 

É gratificante recordar esses tempos de entrega e dedicação a causas exaltantes.

Adenda
Já antes deste dois livros, eu tinha publicado no Boletim de Ciências Económicas da FDUC - revista que era dirigida pelo Professor Teixeira Ribeiro, que nos apoiava, e não estava sujeita a censura - dois extensos estudos sobre temas marxistas, respetivamente O renovamento de de Marx (1971) e Marcuse e a teoria da Revolução (1973), que eram inicialmente destinados à referida Vértice, mas que tinham sido integralmente cortados pela censura