1. Na Público de hoje, António Barreto dá conta do seu "sonho" de adoção de um sistema eleitoral radicalmente diferente do que vigora em Portugal desde a Revolução democrática de 1974-76, propondo a importação de um sistema próximo do francês, em que os deputados são eleitos em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger, ou seja, 230 no nosso caso), por maioria absoluta, havendo uma segunda votação se nenhum candidato obtiver tal maioria na primeira, à qual só podem concorrer os candidatos que na 1ª volta tenham obtido uma percentagem mínima de votos.
Sucede, porém, que se trata de um exercício inteletual impraticável, pois tal revolução eleitoral está fora de equação entre nós, tanto por ser constitucionalmente impossível, como por ser politicamente desaconselhável.
2. Desde a origem que a CRP de 1976 é clara: o sistema eleitoral da AR é de natureza proporcional, sendo os deputados eleitos em círculos plurinomiais infranacionais - que no Continente continuam a ser os antigos distritos administrativos -, sendo os mandatos em cada círculo atribuídos de forma proporcional à votação de cada lista concorrente. Isso faz com que a representação parlamentar reflita aproximadamente a repartição do apoio eleitoral de cada partido político no País. Por conseguinte, é constitucionamente inviável a adoção de um sistema eleitoral maioritário.
Reforçando essa opção fundamental pela proporcionalidade da representação parlamentar, a CRP considera-a um "limite material de revisão", impedindo a sua remoção por via de alteração constitucional. Ora, num Estado de direito constitucional não são politicamente equacionáveis soluções contrárias aos princípios constitucionais básicos.
3. Mesmo que não fosse constitucionalmente inviável, não é de sufragar politicamente essa proposta de revolução eleitoral.
A razão fundamental está no estreitamento forçado da representação partidária no Parlamento - que é inerente a todos os sistemas eleitorais maioritários, mas que é agravada no modelo francês -, a qual, num país sem minorias étnicas ou linguísticas e com reduzidas clivagens políticas territoriais, ficaria reduzida aos dois ou três partidos maiores, afastando os demais e alienando da representação política uma parte substancial dos eleitores. Outros argumentos contra um sistema eleitoral maioritário a duas voltas, para além da dificuldade prática de dividir o país em mais de duzentos círculos de idêntico tamanho eleitoral, seriam a excessiva "personalização" das disputas eleitorais e a vantagem dado aos influentes e "caciques" locais, bem como o aumento da duração e dos custos das operações eleitorais.
Não é por acaso que, ao contrário do sistema de maioria relativa de tipo britânico, que existe num considerável número de países, o sistema eleitoral de tipo francês tem uma reduzida implantação no mundo - não mais de dez países, não havendo nenhum caso na Europa além do país de origem (salvo na Chéquia, mas apenas para a câmara alta do respetivo Parlamento). Ou seja, a política comparada não favorece tal opção.
4. Mas a minha principal objeção à proposta apresentada é a discordância com a substituição do "modelo representativo" clássico do mandato parlamentar, em que os deputados representam ideias e propostas políticas transversais ao território nacional, por um modelo de representação personalizada dos territórios eleitorais, como sucedia nas Cortes medievais, em que os chamados representantes do "3º estado" eram na verdade "procuradores" dos respetivos concelhos.
Nesta perspetiva, julgo que numa democracia pluripartidária, sobretudo em sistemas de governo de tipo parlamentar como o nosso (em que a legitimidade dos governos deriva das eleições parlamentares), não faz muito sentido conceber o parlamento como um agregado de representantes dos círculos eleitorais (que normalmente nem sequer coincidirão com nenhuma comunidade local pré-existente, carecendo, portanto, de identidade política própria) ou aceitar a ideia de que cada deputado local representa todos os habitantes do seu círculo ("o meu deputado"), incluindo os eleitores que votaram noutros candidatos e perfilham posições políticas radicalmente diferentes.
A meu ver, a ideia de que os deputados representam diferentes correntes políticas ao nível de todo o território nacional, e não os círculos por que são eleitos, deve continuar a considerar-se um pressuposto lógico das democracias parlamentares.