terça-feira, 9 de abril de 2024

Não dá para entender (38): Fusão doutrinária das direitas?

1. Não se compreende bem como é que um liberal assumido, como Passos Coelho, se dispõe a apresentar e, implicitamente, a patrocinar «um 'manifesto' contra “os adversários da família”, “a ideologia de género” e “a cultura de morte”», que é coletânea de textos de um conjunto de autores, que, embora com algumas exceções, representa doutrinariamente o que de mais radicalmente de direita antiliberal existe entre nós, combatendo todos os avanços das últimas décadas no sentido de alargar a liberdade individual, nomeadamente a emancipação feminina, a IVG, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a morte assistida em condições-limite, etc.

A publicação de um "manifesto" destes é especialmente inquietante em cima das celebrações do cinquentenário do 25 de Abril, que abriu caminho, desde logo na Constituição de 1976 e na subsequente revisão do Código Civil, à desmontagem da conceção corporativa da família da Ditadura.

2. Que os autores dos textos defendam a suas ideias, individualmente ou organizadamente -, nada a objetar numa democracia liberal. Mas que elas recebam a cobertura política de um ex-líder e ex-primeiro-ministro do PSD -  o atual partido no Governo -, isso é muito menos compreensível, comprometendo sem dúvida o partido onde continua a ter muitos adeptos e em cuja campanha eleitoral participou recentemente. 

Será que, antecipando uma eventual união política, deixou de haver fronteira doutrinária entre a direita liberal e a direita retrógrada?

Adenda
Um leitor objeta que «Passos Coelho deixou claramente de ser liberal, estando cada vez mais perto da direita tradicional, por isso não surpreende que tenha apadrinhado o livro». Assim parece.

Adenda 2
Na apresentação do referido livro, a despropósito, Passos Coelho defendeu que o Governo se deve entender com o Chega, argumentando que não o fazer seria «desrespeitar os eleitores». Ora, o PSD fez a campanha eleitoral sob o lema "não-é-não" a um acordo com Ventura, pelo que a solução que Passos recomenda é que seria trair os eleitores. Claramente, o ex-líder do PSD dá preocupantes mostras de  desorientação política.

Adenda 3
Sobre o tal livro é obrigatório ler esta crítica devastadora de Henrique Raposo no Expresso: «neste livro que junta Passos e Ventura, cheira-se apenas o ódio, o moralismo e a incapacidade para aceitar que há várias formas de amor, de vida, de família». Subscrevo.