quarta-feira, 3 de julho de 2024

Sistema eleitoral (10): Contra os círculos uninominais

1. Saúdo o aparecimento deste manifesto pela reforma do sistema eleitoral, por iniciativa do Professor e ex-deputado Paulo Trigo Pereira, que vem relançar a discussão política sobre o tema, bem como o lançamento deste site sobre o assunto, que permite ampliar a informação e o debate público. 

Todavia, embora entre os subscritores haja diferentes perspetivas sobre o tema, considerando as suas posições conhecidas, penso ser evidente a prevalência dos mais notórios defensores da criação de círculos uninominais para eleger uma parte dos deputados (sem prejuízo da repartição proporcional dos mandatos), no modelo de "sistema proporcional personalizado" de inspiração alemã, que já foi perfilhado na mal-sucedida tentativa de reforma de 1998, da iniciativa do então Governo PS de António Guterres.

Ora, resta saber se melhoraram as chances de o ver aprovado agora, por uma maioria de 2/3 dos deputados na AR.

2. Por minha parte, embora defenda há muito uma fórmula de personalização da eleição dos deputados no quadro do sistema proporcional (foi esse mesmo o tema da minha "última lição" na FDUC em 2017, não publicada...), tornei-me entretanto assaz crítico do modelo alemão, e não é pelas mesmas razões por que desde sempre os pequenos partidos se lhe opõem (por temerem o provável efeito bipolarizador sobre a opção de voto dos eleitores). 

As meus argumentos contra são principalmente os seguintes:

   - a improbabilidade de desenhar, com um mínimo de racionalidade e de identidade territorial, cerca de uma centena de circunscrições eleitorais uninominais, necessariamente com um número aproximado de eleitores, e de atualizar regularmente a sua divisão, em função das mudanças demográficas; 

   -  a criação de duas categorias de deputados, os “dos partidos” (saídos das listas plurinominais) e os “dos eleitores” (eleitos nos círculos uninominais), estes dotados de muito maior visibilidade e alegadamente com “maior legitimidade democrática”, com os possíveis efeitos negativos na coesão dos grupos parlamentares; 

    - o risco de, nos círculos uninominais, os partidos apostarem em "caciques" locais, sem excessivos escrúpulos políticos, com o perigo de surgimento de deputados "limianos", capazes de abandonar a disciplina partidária em troca de vantagens para as suas circunscrições;

   - a inevitável tendência para considerar tais deputados como representantes dos respetivos colégios eleitorais locais e como politicamente responsáveis perante eles no exercício do seu mandato, em contradição com o princípio constitucional do "mandato representativo" (os deputados representam todo o país e gozam de mandato livre);

   - a impossibilidade de aplicar aos deputados dos círculos uninominais as regras legais sobre "paridade de género", com o consequente risco de regressão quanto à árdua conquista da participação feminina na AR;

   - a impossibilidade de solução para o caso de um candidato uninominal, com prestígio local, ganhar o seu círculo, mas o seu partido não ter votos suficientes para o eleger na repartição proporcional dos mandatos; 

  - por último, mas não menos importante, a contradição insanável entre o princípio constitucional crucial de que as eleições parlamentares são uma disputa entre partidos, e depois admitir que os eleitores possam votar em dois partidos diferentes, um no círculo uninominal e outro no correspondente círculo plurinominal. 

Parece-me, por tudo isto, que a criação de círculos uninominais não é uma boa reforma eleitoral -, pelo contrário!

Adenda
Um leitor acrescenta outro argumento, que é o de que o modelo alemão só pemite a "personalização" da eleição de uma parte dos deputados, continuando a maioria deles a ser eleitos em listas partidárias fechadas, pelo que «perde em comparação com o sistema de "voto preferencial", que até existe em mais países e que permite personalizar a escolha de qualquer deputado». Tem razão: na verdade, o sistema eleitoral alemão resultou de um compromisso, no início da RFA, entre os social-democratas, que querim um sistema proporcional, e a democracia-cristã, que queria um sistema maioritário em círculos uninominais. O resultado foi esta "coabitação" pouco consistente entre ambos os sistemas.

Adenda 2
Apoiando este post, um leitor comenta que não consigue mesmo perceber «a obsessão dos especialistas portugueses com o sistema alemão». De facto, não conheço nenhuma situação semelhante lá fora...