sábado, 11 de janeiro de 2025

Não concordo (51): Uma insólita decisão

1. Penso que não tem precedente uma decisão judicial, como esta, em que provavelmente o STA (embora a notícia não o esclareça) ordena à AR a correção do nome de uma comissão de inquérito parlamentar, por alegada violação de direitos fundamentais de caráter pessoal. Não sendo publicamente conhecida a decisão, que ainda não está publicada no site de jurisprudência do referido tribunal, não é possível saber o seu fundamento jurídico nem o seu racional argumentativo, embora seja de admitir que ela tenha sido proferida ao abrigo da «intimação para proteção dos direitos, liberdades e garantias», prevista nos arts. 109º a 111º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), com base no art. 20º, nº 5, da CRP. 

Todavia, sobram-me sérias dúvidas sobre ela, quer quanto à questão substantiva (pois não vejo onde mora a violação da privacidade e do bom nome das tais "duas gémeas" por causa do nome da CIP em causa, onde elas não estão identificadas), quer, antes disso, quanto à competência da justiça administrativa para apreciar e decidir sobre a validade de uma decisão parlamentar, que manifestamente não reveste natureza administrativa, mas sim um indubitável natureza política, por ter sido praticada no exercício da uma típica atividade de controlo político dos atos do Governo e da Administração

Ao decidir um inquérito parlamentar, nem a AR é administração, nem os interessados são "administrados".

2. Ora, na nossa ordem jurídico-constitucional sucede que (i) a justiça administrativa versa, por definição, sobre atos ou omissões administrativas (CRP, arts. 212º e 268º) e que (ii) os atos políticos dos órgãos de soberania (PR, AR e Governo), antigamente designados por "atos de governo", não são suscetíveis de controlo judicial por alegada inconstitucionalidade. Diferentemente do que se passa no Brasil, uma das decisões constituintes de 1976, nunca alterada, foi a de furtar as decisões intrinsecamente políticas ao controlo judicial, para evitar a "politização da justiça" ou a "judicialização da política". O único controlo admissível dos atos políticos é o escrutínio político externo, salvo, eventualmente, a queixa ao Provedor de Justiça, dados os termos amplos do art. 23º da CRP. 

Por isso, só os atos de natureza normativa (leis, convenções internacionais, etc.), o que não é o caso, podem ser contestados por inconstitucionalidade. Acresce que entre nós não existe "recurso de amparo" que permita impugnar diretamente atos do poder público, incluindo atos políticos, quando lesivos de direitos, liberdades e garantias. De resto, caso existisse esse instrumento judicial, ele caberia ao Tribunal Constitucional, e não aos tribunais ordinários.

A não ser que a notícia acima não seja fidedigna quanto ao teor da decisão e nos escape algum aspeto relevante, podemos bem estar perante um caso inédito de "ativismo judicial", por excesso de poder judicial. Penso que a questão merece a devida ponderação doutrinal e jurisprudencial.