segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

O que outros pensam (9): A questão da "democracia iliberal"

1. Não acompanho esta tese de J. Pacheco Pereira, nesta coluna no Público, segundo a qual a noção de "democracia iliberal" não faz sentido, porque, no seu entender, as democracias, ou são liberais ou não são democracias.

Ora, desde há muito que a filosofia e a teoria políticas usam dois critérios diferentes para a classificação dos regimes políticos: (i) o critério de titularidade do poder, distinguindo entre democracia e autocracia e (ii) o critério dos limites do poder, levando à distinção entre liberalismo e autoritarismo

Os primeiros pensadores liberais modernos, como Locke, não eram democratas, pelo contrário, por entenderem que a democracia envolvia o risco de uma "ditadura da maioria", com inerente ameaça para as liberdades individuais. Inversamente, o pai da doutrina democrática moderna, Rousseau, não era liberal, por entender que a "vontade geral" da coletividade deveria prevalecer sobre os interesses individuais.

Embora, na prática, as associações mais prováveis sejam entre democracia e liberalismo e entre autocracia e autoritarismo, a história mostra exemplos de democracias não liberais (como era o caso da democracia clássica de Atenas, onde não havia limites ao poder) e de autocracias liberais (como foi o caso das monarquias constitucionais dualistas do séc. XIX, que não eram nada democráticas, mas eram assaz liberais).

2. A noção de "democracia liberal" é uma síntese entre democracia e liberalismo, mas não uma simples adição de ambas. Na verdade, a democracia liberal é uma democracia limitada pelo liberalismo e um liberalismo limitado pela democracia

Com efeito, na democracia liberal, o poder do povo, expresso por eleições, não é absoluto, sendo constitucionalmente limitado pelas liberdades individuais, pela separação de poderes e pelo Estado de direito (princípio da legalidade, judicial review, etc.). E, por sua vez, o liberalismo pode ser limitado para assegurar a democracia, como é o caso da proibição de associações armadas, ou de ideologia fascista ou racistas, ou da proibição do discurso do ódio racial ou contra minorias.

Como sabemos, as mais antigas democracias liberais (Estados Unidos, Reino Unido, países da Europa ocidental) começaram por ser liberais muito antes de se tornarem democracias, não sem passarem alguns delas por dramáticas experiências de monocracias ditatoriais (como a Alemanha nazi ou a Itália fascista, ou os dois países ibéricos entre os anos 30 e 70 do século passado).

3. Acresce que a oposição entre democracia e autocracia e a contraposição entre liberalismo e autoritarismo não são dicotomias ou/ou, mas sim escalas gradativas entre dois "tipos ideais" (no sentido de Max Weber). Entre as democracias plenas (se é que existem...) e as autocracias absolutas, há democracias imperfeitas, semidemocracias, semiautocracias; entre os regimes liberais e os autoritários há outros mais ou menos liberais ou autoritários, desde o extremo do ideal anarquista ao do oligarquia despótica.

Existem várias instituições académicas e políticas que classificam regularmente os regimes políticos e que não se limitam à dicotomia democracia-autocracia, apostando sempre em "grelhas" de quatro ou mais posições. E nem sempre são convergentes. Por exemplo, numa delas, Portugal figura como "democracia liberal com falhas", enquanto noutras consta como democracia liberal plena.

4. Em conclusão, a noção "democracia iliberal" ou mesmo de "democracia autoritária" pode fazer todo o sentido, para designar aqueles regimes em que a dimensão democrática existe, nomeadamente a democracia eleitoral, mas em que a dimensão liberal é substancialmente subvertida pelo défice de limites ao poder político.

Tal como na Antiga Grécia, também hoje o voto popular pode favorecer, em certas circunstâncias, regimes políticos mais ou menos autoritários, dispostos a limitar liberdades individuais (incluindo a liberdade de expressão), a separação de poderes (a favor do poder executivo), a independência dos tribunais e os poderes de controlo judicial.

Lamentavelmente, nos Estados Unidos, o Presidente Trumnp e a maioria republicana no Congresso, enquanto promovem uma agenda anarcoliberal no campo da política económica, desmantelando o "Estado regulador" (como mostrei AQUI), parecem apostados, ao invés, em implantar um regime político com claros traços autoritários, tanto pela eliminação de checks ao poder executivo e ao poder federal em geral, como pela restrição das liberdades dos cidadãos e da sociedade civil.

Eis a maior supresa dos tempos que correm - ver a mais antiga democracia liberal do mundo em vias de se converter em democracia iliberal.