1. Embora concordando com algumas das "propostas modestas" de reforma do sistema político, apresentadas por António Barreto no seu artigo de hoje no Público, discordo inteiramente da principal delas, que não é nada modesta, e que consiste em abandonar o atual sistema eleitoral parlamentar, pelo qual os deputados são eleitos em círculos plurinominais, proporcionalmente aos votos das respetivas listas, substituindo-o por um sistema eleitoral, inspirado no caso francês, em que eles passariam a ser eleitos individualmente em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger), por maioria absoluta, se necessário com uma segunda volta.
A primeira objeção é a de que se trata de uma proposta qualificadamente inconstitucional, pois a CRP não só estatui obrigatoriamente a eleição por sistema proporcional, como inclui esse princípio entre as "cláusulas pétreas", insuscetíveis de revisão constitucional (CRP, art. 288º). Ora, um dos requisitos elementares para a admissibilidade de qualquer reforma política numa democracia constitucional é o de ela ter cabimento na Lei Fundamental. Mas, neste caso, esta proposta afronta flagrantemente a Constituição.
2. Também a considero politicamente inviável, por várias razões.
- primeiramente, pela dificuldade técnica da sua implementação, pois obrigaria a estabelecer um mapa eleitoral de 230 círculos eleitorais de dimensão eleitoral aproximada, agregando os pequenos municípios e dividindo os maiores em circunscrições sem nenhuma consistência territorial, e obrigando à sua revisão periódica, por efeito das mudanças demográficas;
- em segundo lugar, e principalmente, pela enorme injustiça eleitoral a que o sistema francês, tal como todos os sistemas maioritários, dá origem, priviligiando o principal partido, à custa dos demais, sobretudo os de média e pequena dimensão, que obtêm uma reduzida expressão parlamentar, muito abaixo da sua expressão eleitoral, ou não obtêm nenhuma, o que induz à abstenção dos seus eleitores;
- por último, pela excessiva pessoalização da representação parlamentar, conferindo vantagem às eminências políticas locais, o que facilita a criação de deputados tendencialmente vitalícios, sucessivamente eleitos na sua circunscrição.
Com tal sistema eleitoral, a configuração da AR na imagem acima (eleições de 2024), mesmo com a mesma repartição partidária de votos numa 1ª volta, seria substancialmente diversa, provavelmente com maioria absoluta do PSD e muito menos partidos representados.
Não é por acaso que tal sistema eleitoral é tão pouco seguido no mundo, não havendo nenhum outro exemplo na UE.
3. Como venho defendendo há muitos anos, entendo que o sistema eleitoral vigente carece de obras, para o que têm sido apresentadas numerosas propostas de reforma, umas simples e outras complexas, desde a reformulação dos círculos eleitorais e a criação de um círculo nacional sobreposto, passando pela adoção do voto preferencial (dando aos eleitores a possibilidade de exprimirem a sua preferência por um ou mais candidatos dentro da lista partidária em que votam) até à importação do sistema alemão (em que cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominais, mas depois contabilizados na quota proporcional do respetivo partido).
Além de constitucionalmente viáveis, todas elas podem, à sua maneira, melhorar o desempenho do sistema eleitoral. Ao contrário, por mais milagrosas que possam parecer, as propostas à partida constitucionalmente inviáveis, como a referida acima, de nada valem.
Adenda
Uma leitora acrescenta que outra objeção contra os sistemas de eleição uninominal é a «menor representatividade parlamentar das mulheres e dos grupos sociais de menor rendimento e educação, do que nos sistemas proporcionais». Tem razão.