segunda-feira, 23 de junho de 2025

O que o próximo Presidente deve fazer (19): E quanto à dissolução parlamentar?

1. Se existe uma questão a que todos os candidatos presidenciais devem responder com clareza - depois da penosa experiência dos últimos anos quanto a instabilidade política, mercê de uma sucessão de dissoluções parlamentares e de governos de curta duração -, ela é a de saber a que critérios eles sujeitam o poder de dissolução parlamentar, que é seguramente o mais intrusivo dos seus poderes constitucionais, por isso designado correntemente como a “bomba atómica”. 

 Além da interrupção da legislatura e da convocação de eleições antecipadas, com os inerentes elevados custos financeiros, a dissolução parlamentar suspende a ação legislativa e governativa durante várias semanas, até à formação de novo Governo, o que tem também impacto negativo sobre os investimentos públicos e sobre a vida económica e as decisões de empresários e consumidores, dada a incerteza política criada. 

Acresce que a instabilidade política e a brevidade dos ciclos políticos que a frequência de dissoluções gera põem em causa também a confiança dos cidadãos na democracia parlamentar, em particular, e nas instituições políticas, em geral, fazendo evocar o fantasma de má memória da instabilidade da I República, que a vitimou

 2. Segundo a nossa Constituição, o Presidente da República tem o poder de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas, aparentemente sem outra limitação que não sejam os “períodos de defeso” nela definidos, que proíbem a dissolução nos primeiros seis meses depois das eleições parlamentares e nos últimos seis meses do mandato do Presidente da República. 

Tratar-se-ia, portanto, de um poder discricionário, ou seja, de um poder presidencial livre, embora devendo ser justificado, como todos os atos do poder público numa democracia constitucional. Discordo, porém, desse entendimento, que considero “laxista” e pouco respeitador das regras de interpretação constitucional. Como sabe qualquer aprendiz de jurista, a normas não podem ser lidas literalmente nem isoladamente, devendo a sua interpretação ter em conta a sua razão de ser (“ratio legis”) e o seu enquadramento sistemático com outras normas atinentes ao exercício do mandato presidencial. 

 3. Quanto à razão de ser da dissoluação parlamentar, importa sublinhar que, sob pena de “desvio de poder” presidencial, o poder de dissolução não pode ser exercido por capricho presidencial, ou deliberadamente para pôr fim a um parlamento de cuja composição política se não gosta, ou para reforçar a posição do partido governante, aproveitando uma conjuntura propícia. Tal como os demais poderes presidenciais, o poder de dissolução parlamentar está ao serviço da realização das funções do Presidente da República, enunciadas no art. 120º da CRP, que, por sua vez, visam a realização dos objetivos constitucionais do Estado. Além disso, quanto ao seu enquadramento no sistema constitucional, é obrigatório considerar que a dissolução parlamentar se traduz numa derrogação grave do princípio da separação de poderes entre o Presidente da República e a AR e da autonomia constitucional desta perante aquele, interrompendo a legislatura de quatro anos, para a qual ela é eleita pelos cidadãos. 

Por conseguinte tem de optar-se por uma interpretação restritiva daquele poder presidencial, que só deve ser exercido quando se torne imprescindível renovar o mandato parlamentar, considerando sobretudo a função da Assembleia da República de suporte institucional e político do Governo e da estabilidade governamental. Ou seja, a dissolução parlamentar deve estar submetida a um princípio de necessidade e de proporcionalidade, de modo a evitar a sua banalização

 4. Neste quadro, ao contrário da doutrina adotada num passado recente, não há nenhuma razão para dissolver a Assembleia da República só porque houve rejeição de um orçamento ou autodemissão do PM, pois pode ser possível negociar um novo orçamento com a oposição ou formar novo Governo no quadro parlamentar existente. 

Apesar de a experiência mostrar resistência a formar novos governos no quadro parlamentar existente, preferindo a dissolução (como foi o caso em 1979, 1983, 1987 e, especialmente, em 2023, quando havia uma maioria absoluta), os efeitos negativos da instabilidade parlamentar daí resultante aconselham vivamente a mudar a prática, que a Constituição de modo nenhum favorece. 

Em contrapartida, há situações que podem tornar obrigatória a dissolução parlamentar, nomeadamente quando, no seguimento de eleições parlamentares, não seja possível formar um novo Governo, dentro dos seis meses de impedimento de dissolução parlamentar, ou quando não tenha sido possível aprovar o orçamento anual dentro de um prazo dilatório razoável, por exemplo, até aos três meses do novo ano orçamental. Outros casos podem autorizar a dissolução parlamentar, como a inviabilidade, após demissão do Governo, por renúncia ou por ato parlamentar, de formar novo Governo, ou quando a dissolução seja solicitada pelo próprio PM, invocando a dificuldade de governar no quadro parlamentar existente. 

Ou seja, em princípio, a dissolução paralementar deve ser um remédio de último recurso para as situações de inviablidade de soluções de governo.

5. A frequência da dissolução parlamentar, nada menos de 10 casos, gera uma evidente instabilidade política. Dos dezasseis parlamentos eleitos, só seis completarem a legislatura

A nossa experiência constitucional mostra que, embora tenha havido casos de dissolução de parlamentos onde havia maioria parlamentar de um partido ou de uma coligação (casos de 1983, 1985, 2004 e 2023), a maior parte delas ocorreu com parlamentos com governos minoritários, justamente por serem mais vulneráveis a crises políticas, resultantes de derrotas parlamentares ou do mau estado da economia ou das finanças públicas, e por, em regra, não haver soluções governativas alternativas no quadro parlamentar existente. 

Não por acaso, quase todos os casos de legislatura completa respeitam a parlamentos com maioria absoluta (monopartidária ou de coligação)

6. Neste quadro, para além de um critério exigente para a dissolução parlamentar, como recurso de última instância, a estabilidade política depende também da capacidade de o sistema eleitoral gerar parlamentos suscetíveis de proporcionar soluções de governo sólidas, bem como de condições apropriadas de passagem parlamentar dos governos e da sua manutenção

Nesse sentido, a reforma do sistema eleitoral para contrariar a fragmentação parlamentar e a reforma do procedimento de formação de governos - exigindo a sua aprovação parlamentar à partida, “forçando” governos de coligação negociada, bem como a adoção da “moção de censura construtiva” -, poderiam prevenir, ou pelo menos limitar muito, a ocorrência das situações que têm dado lugar, com demasiada frequência, a dissolução parlamentar. 

No entanto, se a mudança nos mecanismos de formação e de dependência parlamentar dos governos, carece de revisão constitucional, outro tanto não sucede com a revisão da lei eleitoral, que pode ser feita sem mexer no texto constitucional, embora também por maioria de 2/3.