1. No princípio de agosto, o Governo anunciava a aprovação em Conselho de Ministros de um diploma a fundir a FCT com a Agência de Inovação, pelo que, como é normal, o diplomá deverá ter sido enviado para promulgação do PR. Contudo, mais de três meses passaram sem promulgação do diploma nem notícia de veto presidencial.
Passado este tempo todo, o Governo vem anunciar uma nova versão do diploma, com uma significativa alteração em relação ao que se sabia do primeiro, quanto ao formato institucional da nova entidade, informando que ela resultava de uma «sugestão» do PR, não se sabe a que título, nem quando, nem por que meio. O que se terá passado?
Conjeturalmente, passou-se o seguinte: face à forte oposição da comunidade científica ao referido diploma, e não concordando também com ele ou com algumas das suas soluções, o PR decidiu não o promulgar, sem, porém, o vetar, como devia, preferindo devolvê-lo à procedência com sugestões de alteração (que desconhecemos), que o Governo acabou por acolher, no todo ou em parte, como agora anuncia. O problema é que nada disto é conforme à Constituição.
2. Em primeiro lugar, nada autoriza o PR a devolver ao Governo um diploma legislativo sem veto formal, devidamente justificado, tal como previsto na Constituição. Segundo, tudo na Constituição contraria essa espécie de "negociação legislativa" informal (?) entre o Governo e o PR, tornado colegislador, em afronta do princípio constitucional da separação de poderes. Por último, é inadmissível este procedimento legislativo clandestino, sem qualquer informação pública, ao arrepio do princípio da transparência e do acompanhamento público que a formação das leis deve observar num Estado de direito constitucional, que foi justamente construído contra a "arcana praxis" do Antigo Regime pré-liberal.
Não dá para compreender como é que o Presidente da República se deixa envolver numa operação tão grosseiramente à margem da Constituição quanto ao exercício do poder legislativo.
3. Há que encontrar meios para pôr cobro a estas situações de descabido "conluio legislativo" entre Belém e São Bento, à margem do procedimento previsto na Constituição e da separação clara entre o poder legislativo do Governo, quando o tem, e o subsequente poder de controlo presidencial, para efeitos de promulgação ou de eventual veto.
- que o Governo publique antecipdamente a agenda legislativa de cada Conselho de Ministros;- que, logo depois, publique o texto dos diplomas legislativos aprovados e indique a data do seu envio para Belém;- que o PR publique o despacho de promulgação ou veto dos diplomas governamentais, como faz em relação aos da AR.
O procedimento legislativo dos decretos-leis não pode continuar escondido numa "caixa negra", à margem do escrutínio público.
4. Quanto à emenda presidencial do diploma, substituindo o formato institucional da nova entidade pública, que deixa de ser o de sociedade comercial (SA) para passar ao de entidade pública empresarial (EPE), ela atenua um pouco a gravidade da solução governamental, mas continua a ser uma solução errada, pois não se vê onde onde é que na gestão da subvenção pública à investigação existe produção de serviços contra um preço, que é essencial à noção de empresa.
Continua, portanto, a verificar-se a mesma fraude à distinção constitucional entre o setor público empresarial (SPE) e o setor público administrativo (SPA) e de fuga indevida da nova entidade administrativa às regras da "Constituição administativa" da CRP. O PR não se devia deixar expor como coautor de um desvio desta gravidade aos princípios constitucionais.
5. Acresce o risco de se verificar uma situação politicamente embaraçosa.
Os decretos-leis governamentais podem ser chamados ato contínuo à AR, para efeitos de rejeição ou de alteração - o que provavelmente vai ocorrer. Se a AR questionar o formato pseudoempresarial da nova agência administrativa, que se sabe agora provir de Belém, em que situação fica o PR, se a AR decidir - como, a meu ver, deve - revogar esse ponto da "parceria legislativa" entre Belém e São Bento? E em que situação fica ele, quando for chamado a promulgar essa lei da AR que descarte esse seu indevido contributo de legislador ocasional?
Eis como o desrespeito dos limites constitucionais dos poderes presidenciais - o PR não é legislador nem colegislador - pode gerar consequências políticas assaz delicadas...