1. Julgava eu que esta minha rubrica de crítica da atuação presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) ao longo destes anos tinha chegado ao fim, mercê da aproximação do termo do seu mandato, com as eleições já marcadas para 18 de janeiro e estando já em curso a pré-campanha eleitoral, pelo que se julgaria que o Presidente cessante deveria entrar discretamente em fase de retiro, para não perturbar o debate entre os candidatos à sua sucessão.
Eis senão quando ele anuncia a convoção de uma reunião do Conselho de Estado para o dia 9 de Janeiro, para «para analisar a situação internacional, em particular a situação na Ucrânia»! Ora, além de manifestamente inoportuna - até porque a atual composição do Conselho de Estado inclui dois candidatos presidenciais (Mendes e Ventura) e a vaga da Provedora de Justiça continua por preencher -, esta reunião também é constitucionalmente descabida. De facto, como estabelece a Constituição, o Conselho é o órgão consultivo do Presidente, naturalmente para dar parecer sobre «o excercício das suas funções», e é evidente que o PR não tem nenhuma competência quanto à condução da política externa, que pertence ao foro exclusivo do Governo, sob escrutínio político da AR.
Por conseguinte, como já assinalei noutras ocasiões semelhantes (por exemplo AQUI e AQUI), trata-se de mais um flagrante caso de abuso de poder de MRS, quer para se ingerir na condução da política exterior do País, quer para transformar o Conselho de Estado numa espécie de segunda câmara parlamentar de debate e escrutínio político, usurpando o papel próprio da AR.
2. É certo que, como defendo há muito, numa interpretação sistemática da Constituição, o PM deve consultar o PR sobre decisões de política externa e de defesa. Mas tal função de aconselhamento presidencial - que não está explicitamente prevista na Constituição - constitui uma relação privativa entre ambos, em que o PR não deve fazer-se substituir pelo Conselho de Estado, dada a composição politicamente plural deste, incluindo a oposição.
Parece que MRS se queixa de que Montenegro não consultou Belém sobre decisões já publicamente anuncidas em relação à Ucrânia, pelo que a convocação do Conselho de Estado seria um modo de corrigir essa omissão do PM. Porém, o Conselho é órgão de aconselhamento do PR, e não do PM, e não pode ser tranformado num instrumento de avaliação e disciplina das omissões do segundo em relação ao primeiro.
As eventuais advertências do PR ao PM, por desrespeito das obrigações deste, devem ser feitas diretamente (se necessário, em público), e não por intermédio do Conselho de Estado, instrumentalizando a explícita função constitucional deste, de aconselhamento politicamente plural do PR.