sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Confissões teológicas

É conhecida a forma decidida, sem quaisquer dúvidas, com que Durão Barroso envolveu Portugal na guerra do Iraque. Em Maio de 2003, poucas semanas depois da invasão, o então Primeiro Ministro admitia a participação portuguesa nas forças de estabilização, escusando-se a adiantar os moldes em que seria feita ou se seria enquadrada num mandato internacional. Questionado sobre a posição do PR acerca do assunto, Durão Barroso afirmou então que "o importante é responder às necessidades do povo iraquiano em vez de estarmos com uma discussão teológica ou formal".
Um mês mais tarde, poucas semanas antes do atentado que vitimou Sérgio Vieira de Mello e outros funcionários das NU no Iraque, Durão Barroso dizia "as NU, nesta fase, em vez de se perderem numa discussão teológica acerca de problemas de legitimidade, deveriam era colaborar pragmaticamente para a melhoria das necessidades do povo iraquiano".
Questionado agora nesta crise suscitada pela sua escolha para Comissário europeu do Sr. Buttiglione, indigitado para a pasta da Justiça e Liberdades, sobre se considerava a homossexualidade um pecado, Durão Barroso confessou finalmente: "é uma matéria teológica e em matéria teológica as minhas competências são muito limitadas".

P.S. Nada teológico, aposto, será na próxima semana o voto da esmagadora maioria das deputadas ao PE, sejam de direita ou de esquerda, ofendidas pelas tiradas arcaico-fundamentalistas do Sr. Buttiglione, em especial a última «pérola» sobre a capacidade educativa das mães sozinhas.

Ana Gomes

A democracia interna no PCP

O antigo dirigente comunista Edgar Correia tem razão quando diz que o PCP não cumpre a lei dos partidos no que respeita às eleições por voto secreto, visto que se limita a anunciar, contrafeito, o voto secreto na eleição do comité central no próximo congresso, quando a lei requer o voto secreto em todas as eleições, o que abrange desde logo as eleições de delegados ao congresso, bem como as posteriores eleições da comissão política e do secretário-geral. Causa estranheza que o partido se arrisque a ver judicialmente impugnado o congresso e as referidas eleições...
Para além disso torna-se desnecessário dizer que o PCP continua a não respeitar outro requisito essencial da democracia eleitoral, ou seja, a liberdade e igualdade de candidaturas em todas essas eleições, havendo somente a proposta oficial, vinda de cima. Enquanto os dogmas leninistas do "centralismo democrático" continuarem a prevalecer, o PCP estará sempre à margem das comuns regras democráticas na sua organização interna.

O sistema eleitoral norte-americano (adenda)

Um leitor chama-me a atenção para que o Colorado vai efectuar um referendo sobre a alteração do sistema eleitoral no sentido da repartição proporcional dos seus representantes no colégio eleitoral, que se realizará no mesmo dia das eleições presidenciais, para ter efeito imediatamente em relação a elas. Note-se que se em 2000 tivesse havido distribuição proporcional dos representantes do Colorado, Bush não teria sido eleito presidente, visto que ganhou as eleições nesse Estado com pouco mais de metade dos votos, beneficiando da totalidade dos 9 representantes, ao passo que só teria direito a 5 se tivesse havido representação proporcional, o que daria a vitória a Gore no colégio eleitoral nacional. Não é por acaso que os Republicanos se opõem à mudança de regime no Colorado.

O sistema eleitoral norte-americano é democrático?

Como se sabe a eleição do presidente dos Estados Unidos não é propriamente uma eleição directa. O que os cidadãos elegem é um colégio eleitoral composto pelos representantes dos Estados, cujo número é igual ao número de representantes de cada Estado no Congresso Federal (2 senadores mais um número de deputados proporcional à população de cada Estado).
O modo de eleição dos membros do colégio eleitoral é definido pelos próprios Estados, não estando fixado na Constituição federal. Ora quase todos os Estados escolhem esses representantes em eleições directas por um sistema maioritário de lista a nível de todo o Estado, ou seja, o candidato presidencial que tiver mais votos em cada Estado ganha todos os seus representantes (the winner takes all). Além de reduzir a disputa a dois candidatos, esse sistema permite que em caso de eleição mais renhida a vitória favoreça um candidato sem maioria de votos a nível nacional, como sucedeu com Bush nas eleições de 2000, em que Al Gore obteve maior percentagem de votos. Com apenas mais umas escassas centenas de votos na Flórida do que Gore (resultado aliás muito contestado) Bush ganhou todos os "grandes eleitores" deste Estado, um dos maiores, que lhe deram uma vitória tangencial no colégio eleitoral nacional.
Se fosse usado o sistema proporcional na eleição dos representantes estaduais deixaria de se verificar a discrepância referida. Mesmo se fosse usado o sistema de círculos uninomimais que servem de base à eleição da Câmara dos Representantes (como sucede no Nebraska e no Maine), também poderia haver uma distribuição menos iníqua dos "grandes eleitores" de cada Estado.
Ora o sistema maioritário de lista não é comum em sistemas democráticos, onde a alternativa é entre a eleição proporcional de lista ou a eleição maioritária individual. Os sistemas maioritários de lista foram em geral adoptados nos Estados autoritários que pretenderam exibir algum tipo de eleições (como sucedeu em Portugal durante o Estado Novo), com o fim de afastar qualquer hipótese de representação da oposição.
Infelizmente não se conhece nenhum movimento para alterar o controverso sistema eleitoral do Presidente dos Estados Unidos. A verdade é que a alteração só teria sentido caso fosse feita simultaneamente a nível de todo o país, visto que os Estados tradicionalmente republicanos não vão alterar o sistema se os Estados dominados pelo partido democrata o não fizerem também (e vice-versa). Por isso, a alteração só é de esperar, quando muito, nos Estados onde nenhum dos grandes partidos é hegemónico.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Não há limites...

... para a leviandade e irresponsabilidade deste (des)governo. Santana Lopes propõe que os professores desocupados, por não terem horário atribuído, sejam utilizados como assessores dos juízes, não se sabe a fazer o quê!
Vai-se avolumando dia a dia a antologia dos dislates do primeiro-ministro...

as saudades que eu já tinha

Há um 4º andar na Avenida das Forças Armadas que, durante algum tempo, evitei. Olhar a casa, passar na rua. Depois habituei-me à ideia, voltei a usufruir da avenida quando havia necessidade de a percorrer e, inclusive, voltei naturalmente a observar - de passagem - o 4º andar onde passei o ano mais feliz da minha vida.
Durante algum tempo, tive a sensação de que estava abandonado. Mais tarde, repentinamente, comecei a aperceber-me de luz, de pintura nova, de mudanças na sua grande varanda.
Hoje, ao descer de carro a avenida, notei o vulto de um casal movendo-se atrás das persianas. Parado num semáforo, vi-os claramente e adivinhei-lhos os rostos e as intenções. Não tive dúvidas. Não se tratavam de novos moradores. Eram dois fantasmas, dois alegres fantasmas do tempo em que lá morou a felicidade.

20000 numa esplanada

Andava há dias a sentir um estranho mal estar físico cuja origem desconhecia. Súbito, fez-se luz: percebi que estava atrasado no meu elogio quinzenal ao Rui Branco. Assim, e aproveitando o pretexto de chegarem hoje às primeiras 20.000 visitas, saúdo o Rui, o Nuno Costa Santos, o Alexandre Borges, o João Pedro George e o Filipe Nunes (agora em Madrid, nas míticas pisadas do desaparecido Vasco Lourinho) - com um abraço de parabéns. Eles são a extraordinária equipa do ESPLANAR, um blog que, por entre poemas, traduções, análises, humor, literatura e comentários avulsos, vai cumprindo a nobre função de "Martinho da Arcada" virtual. Eles trazem-nos todos os dias as suas perspectivas sobre a vida, as relações humanas, a política, a cultura e o país - por isso saravá, um calduço no toutiço, um afago na nuca, uma festinha na moleirinha, um abraço amigo, fraterno e um grande bem-hajam!

1000 espectadores depois

O blogue e os espectáculos das Urgências continuam nos cuidados intensivos.

Domingos Farinho

Além de grande amigo, advogado, poeta, professor de Direito, aficcionado da blogoesfera e animador de meia-dúzia de blogues, o Domingos é um notável pensador político, um futuro comentador de mão cheia. E resolveu dar a cara, com coragem, em Uma Campanha Alegre - onde assina na primeira pessoa uma série de comentários e análises ao bagunçado forum onde nos calhou viver, este portugalzinho de hoje.

Para ler e aprender e discutir e comentar e linkar e.

uma questão de dialéctica

Último (e único) comentário sobre o Benfica-Porto:

Zahovic disse, um dia antes do jogo, que "não via como poderiam parar este Benfica".
Olegário Benquerença deu a resposta cabal 24 horas depois.

Referendar a Constituição europeia (2)

No que respeita à aprovação popular da Constituição, os dois primeiros referendos já marcados não suscitam dificuldades, salvo algum percalço inesperado. Na Espanha ela é praticamente pacífica em quase todo o espectro político. Em França, apesar da oposição da direita e da esquerda nacionalistas, bem como da divisão dentro do PS a esse respeito, uma sondagem recente dá ao "sim" uma confortável margem de quase 70%.
E em Portugal, como será?

Referendar a Constituição Europeia

Desta peça do Diário de Notícias de hoje retira-se que tudo se encaminha para uma revisão constitucional extraordinária (3 meses depois de uma ordinária!...) para permitir pôr a referendo a Constituição Europeia em si mesma, globalmente considerada, e não um conjunto das suas opções de fundo individualmente enunciadas. O que é incrível, e abona muito pouco a favor dos partidos e dos deputados, é que não se tenham dado conta atempadamente daquilo que era evidente, ou seja, que o pretendido referendo não cabia no actual texto da CRP...
Quanto à data do referendo, a indicada pelo Governo -- Abril do próximo ano -- pode considerar-se a data limite, tendo em conta o nosso calendário político do próximo ano (com a proximidade das eleições locais no Outono e eleições presidenciais no início de 2005). Em Espanha o referendo já se encontra marcado para Fevereiro, e em França aponta-se para Maio. Entretanto o Parlamento Europeu exprimiu a sua preferência pela simultaneidade dos referendos previstos em vários Estados membros, tendo indicado as datas de 5-8 de Maio.

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Malthusianismo profissional

«Gostaria imenso que pudesse dar-me a sua opinião sobre as ordens profissionais, (...) uma vez que sou um estudante do ensino superior que acha que a Assembleia da República deu um poder desmesurado às ordens profissionais. Sendo eu estudante de contabilidade numa das mais reconhecidas instituições de ensino superior nessa área vejo o meu ingresso na Câmara de Técnicos Oficiais de Contas vedado porque os membros que lá estão não querem concorrência.
(...) Esta questão não afecta só a mim mas a milhares de estudantes que ingressam no ensino superior a pensar que um dia vão poder desempenhar as funções para que estudam, e no entanto, não são as universidades mas sim as ordens profissionais que decidem o seu futuro. As ditas ordens profissionais argumentam com a qualidade dos profissionais que saem da universidade mas isso é falso. (...) Os que pretendam ingressar no Ordem dos Revisores Oficiais de Contas têm de pagar cinco mil euros para fazer os exames, e ainda fazer um estágio de três anos. Ora essa medida barra o acesso aos licenciados com menos possibilidades financeiras. Não está em questão o seu conhecimento.»

(E. Oliveira)

Comentário

Sou muito crítico desde há muito tempo da tendência malthusiana das ordens profissionais, no sentido de restringirem excessivamente o acesso à profissão, o que fazem pelos mais variados modos: elevando os requisitos académicos, conseguindo limitar logo o acesso aos cursos (como sucedeu escandalosamente com a Medicina), exigindo a "creditação" dos cursos pelas próprias ordens, criando barreiras ao acesso (exames à entrada), estabelecendo longos estágios profissionais, agravando a exigência dos exames de estágio, de modo a reprovar muitos candidatos, fixando taxas incomportáveis de estágio e de exame, etc. Infelizmente os estatutos da ordens, cujos projectos são elaborados pelas mesmas, são em geral "carimbados" sem discussão pela AR ou pelo Governo, sem que se definam as salvaguardas necessárias para garantir a liberdade de acesso. Penso que neste momento existem entre nós restrições desproporcionadas e injustificáveis à liberdade profissional.

O que resta

Num artigo de hoje no Público, Domingos Lopes defende a hipótese de Carvalho da Silva, o prestigiado secretário-geral da CGTP, para a liderança do PCP. Ainda há quem prefira alimentar ilusões de "aggiornamento" na Soeiro Pereira Gomes! Quando nada mais resta...

Poder judicial

«Serve o presente para manifestar a minha total concordância com o post "Poder Judicial, literalmente". A questão da nomeação de uma Académica reputada para a direcção do CEJ é a prova acabada de que a visão predominantemente estatutária que tem marcado a leitura de muitas nomeações confunde o essencial com o acessório. Isto é, ao polarizar-se o acerto ou desacerto da nomeação no "status" da pessoa nomeada, desmerece-se as qualidades da pessoa. Não interesssa se é magistrado ou não. Interessa antes se é uma pessoa capaz e habilitada ao exercício do cargo.
Ora, (...) manda a lógica que, na perspectivação contrária, não vislumbre qualquer "diminuição de capacidade" por parte dos magistrados (quaisquer que estes sejam) para o exercício de outros cargos públicos, em que também sobreleve o serviço à República. Apesar do "politicamente correcto" apontar para a hermetização dos magistrados nos tribunais, são ainda as mesmas razões de (i) "desendogeneização", (ii) de ausência de "incapacidades de exercício" e de (iii) enriquecimento de experiências que me levam a defendê-lo. Só assim evitaremos que "haja dois pesos e duas medidas", ou, nas suas acertadas palavras, que desejemos "sol na eira e chuva no nabal".»

(A F Cunha)

Passou-se!

As declarações do ministro dos Assuntos Parlamentares perante a Alta Autoridade para a Comunicação Social sobre a existência de uma espécie de "conspiração objectiva" do Expresso, do Público e de Marcelo Rebelo de Sousa para atacar o Governo são destrambelhadas.
Pelos vistos, para ser ministro deste governo não é preciso ser dotado de um mínimo de siso político. Qual será o próximo disparate do áulico de Santana Lopes?

Poder judicial, literalmente

Num agreste comunicado, a Associação Sindical dos Juízes (ASJP) manifesta «frontal discordância» em relação à nomeação de um não magistrado (a Prof. Anabela Rodrigues, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) para director do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), a instituição pública de formação de magistrados judiciais e do Ministério Público. O sindicato dos juízes acrescenta que essa nomeação «não credibiliza as instituições judiciárias, e não é abonatória da independência do poder judicial».
O escândalo da ASJP tresanda a corporativismo vulgar. A lei não estabelece nenhuma "reserva judicial" desse cargo, e nada a impõe ou recomenda. Até há boas razões para uma direcção "leiga": do que se trata é de formar magistrados de acordo com o interesse geral da justiça e não necessariamente segundo a concepção endógena dos próprios interessados. Por último, não faz nenhum sentido neste contexto a invocação da «independência do poder judicial», que em nada é afectada pela qualidade do director do CEJ.
Só é pena que o zelo da ASJP na defesa da independência do "poder judicial" não se tenha expresso até agora numa igualmente «frontal discordância» da nomeação de juízes para cargos exteriores aos tribunais, na maior parte dos casos por escolha política do Governo, o que é seguramente muito mais comprometedor para a sua independência. Sol na eira e chuva no nabal...
(Revisto)

Direito à independência, de quem?

Promovida pelo blogue Briteiros está em curso uma petição para conferir à Madeira o direito à independência. O propósito é virtuoso, mas duvido que eles queiram, enquanto o dinheiro continuar a jorrar abundantemente de Lisboa para o Funchal. Não será melhor conferir o direito à independência do resto do País em relação à Madeira de Jardim?! Era sucesso garantido...

terça-feira, 19 de outubro de 2004

"Jardinismo"

Os resultados das eleições regionais da Madeira -- a vitória menos expressiva de sempre do PSD e o melhor resultado de sempre do PS --, poderão eles tornar previsível a alternância democrática na Madeira e significar o princípio do fim do "jardinismo", após quase três décadas de hegemonia? Tal é o tema do meu artigo no Público de hoje (também coligido no Aba da Causa, com link aqui ao lado, na coluna da direita).

Benfica

Só agora me recompus da derrota de domingo ante o Porto. Os meus amigos lampiões é que ainda não. Dizem que tudo é preferível a perder-se assim, espoliados pelos árbitros, e que teria sido bem melhor se tivéssemos sido dominados futebolisticamente pelo clube das Antas e ponto final. Discordo. Prefiro ter perdido assim. É bem mais transparente e encorajador para a Luz.

Não subscrevo, porém, a maioria dos comentários desbragados dos da minha cor. É claro que fomos prejudicados em momentos capitais - um golo e dois penaltis por marcar -, mas não quero acreditar que tenha havido qualquer intenção dolosa por parte de Benquerença e dos seus auxiliares. O que aconteceu dentro e fora das quatro linhas decorre da normalidade futebolística lusitana.

Primeiro, o golo negado. É bem verdade que o lance é de difícil análise e que só o recurso a meios tecnológicos modernos, comuns noutras modalidades e sistematicamente negados por esse grupo de gerontes incompetentes da FIFA e do International Board, poderá um dia introduzir mais rigor na arbitragem. Acontece que a forma como o lance se desenrola e o movimento de Baía a safar a bola de dentro da baliza não deveriam deixar dúvidas a uma equipa treinada e paga para ajuizar lances difíceis num desporto de alta competição. Bastaria que, nas acções de reciclagem, tivessem aulas de física. Na sua ausência e perante a conhecida correlação de forças no futebol português, os Benquerenças aplicaram a regra habitual: em situações difíceis, o Porto deve gozar do benefício da dúvida. O mesmo se passou nos dois lances sobre Karadas, ambos para castigo máximo, como as imagens e as fotos evidenciaram.

Fora das quatro linhas, foi a rasquice suprema, para gáudio do povão.
Luís Nazaré

Esquerda v direita

«Compreendo a sua reinvindicação (...) de que "a distinção entre esquerda e direita continua a fazer sentido", mas a verdade é que os resultados de algumas sondagens recentes revelam um progressivo desinteresse dos portugueses acerca de uma tal distinção.
Julgo que seria oportuno tentar entender as razões que levam os portugueses a desinteressar-se por esta matéria. Uma explicação plausível será a de que os portugueses se encontram confundidos com a prática política dos partidos que habitualmente tomam conta do governo da nação, PS e PSD, o primeiro de esquerda e o segundo de direita, pelo menos de um ponto de vista formal.
Assim sendo, coloca-se uma pergunta óbvia. Na prática política, quem terá contribuído para a confusão e desinteresse dos portugueses: a direita, por adoptar atitudes de esquerda, ou a esquerda por adoptar atitudes de direita?
A resposta não parece difícil e convinha que fosse objecto de alguma meditação. Até porque, hoje em dia, se torna difícil classificar algumas das figuras políticas mais emblemáticas. (...)»

(Jorge Oliveira)

Serviços públicos e mercado

Os que se opõem à existência de um serviço público de rádio e televisão, como garantia mínima de uma esfera de pluralismo de informação, de ideias e de opinião (entre outras coisas), costumam defender também que deixe de haver escolas públicas, hospitais públicos, e outros serviços públicos que visam proporcionar acesso universal, equitativo e plural (e por vezes gratuito) a certos bens básicos (informação, educação, cuidados de saúde, etc.) que o mercado só por si não proporcionaria nessas condições. São coerentes, sempre pela mesma razão: eles não precisam desses serviços públicos para terem acesso privilegiado a esses bens e por isso também não querem pagá-los. Uma posição inquestionavelmente racional, pois claro!
É também por isso que a distinção entre esquerda e direita continua a fazer todo o sentido!

Guilhermina Suggia



Nos últimos dias tenho-me deliciado a trabalhar ao som de uma excelente interpretação de obras para violoncelo e piano de Heitor Villa-Lobos, que uma amiga minha brasileira, sabedora da minha paixão por obras de violoncelo, me trouxe do Brasil. Eis senão quando recebo um mail de Virgílio Marques, um dos autores do blogue Guilhermina Suggia, a anunciar a criação de uma associação de amigos/admiradores da grande violoncelista. Não resisto a divulgar o blogue e a apoiar a ideia da associação.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

O sono da razão democrática

Na Madeira, ainda não se processou, no plano dos factos, a transição da ditadura para a democracia: é uma constatação que qualquer pessoa com formação democrática mínima pode fazer. Mas é o que nunca fizeram, até hoje, os órgãos de soberania que, ao longo de décadas, têm contemporizado e sido cúmplices com uma situação de excepção que atenta contra os valores consagrados na Constituição da República.

Tudo se passa como se uma parte do território nacional pudesse subtrair-se ao regime democrático que nos rege. E como se isso não violasse o próprio conceito de Estado unitário ou alguns princípios essenciais do Estado de direito -- que asseguram o respeito pelas liberdades e garantias dos cidadãos, incluindo o pluralismo das opiniões.

A menoridade democrática da Madeira é entendida, por vezes, como uma fatalidade incontornável ou um fruto espúrio, uma consequência perversa dessa conquista democrática que são as autonomias. Mas estarão as autonomias à margem da lei fundamental do país? O preço a pagar pelas autonomias (cada vez mais alargadas ao longo de sucessivas revisões constitucionais) é a impunidade do regime jardinista? Eis uma questão a que os mais altos responsáveis políticos do Estado se têm furtado a responder.

A «obra» deixada por Alberto João Jardim parece caucionar a sua inimputabilidade política. Mesmo sem pôr em questão a importância física dessa «obra» (aliás altamente discutível em termos de desenvolvimento sustentado de uma região e com custos terríveis para as gerações vindouras), alguém admitirá, porém, a bondade de regimes autoritários ou totalitários (como os de Hitler ou Estaline) em nome da «obra» edificada pelos respectivos ditadores? A falta de alternância democrática da Madeira poderá ser evocada como normal e positiva em nome da «estabilidade», mesmo que essa estabilidade se confunda já com aquela que conhecemos durante o salazarismo?

A governamentalização da sociedade civil e a sua asfixia pelos poderes públicos, a desresponsabilização dos actores políticos que fazem «obra» sem assumir os compromissos devidos aos seus custos (e, ainda por cima, sufocam as liberdades) não é normal num Estado de direito democrático. Trata-se de uma efectiva monstruosidade. Mas é uma monstruosidade que não provoca grandes incómodos entre os admiradores continentais de Jardim (antes pelo contrário) nem parece ser suficiente para mobilizar de forma consequente os seus opositores.

Em relação à Madeira vivemos uma espécie de sono da razão democrática. Só que é um sono cujo vírus contamina a consciência e a vivência da democracia em Portugal. Se aceitamos como normal ou até motivo de elogios (e imitação) o que se passa na Madeira, que impede que se pense o mesmo relativamente ao resto do país?

Vicente Jorge Silva

A notícia e a não-notícia

Os Açores foram notícia no passado domingo, a Madeira não. As previsões apontavam para uma disputa de resultado muito incerto nos Açores, onde se admitia que a coligação PSD-CDS pudesse ganhar as eleições regionais. Na Madeira, pelo contrário, a única dúvida sobre o resultado eleitoral residia na maior ou menor expressão da inevitável e fatal maioria absoluta de Alberto João Jardim. Ora, numa democracia normal não há certezas absolutas sobre vencedores antecipados e, por isso, o factor surpresa faz parte da própria lógica democrática. A surpresa açoriana teve como contraponto a não-surpresa madeirense (se exceptuarmos o melhor resultado de sempre do PS). É a surpresa, a novidade, que cria a notícia, não aquilo que é previsível, velho, conhecido por antecipação. E que, como o jardinismo, cheira a mofo.

Mas a surpresa açoriana relativizou, ainda mais, a não-surpresa madeirense. Apesar de já se saber que o jardinismo estava «condenado» a obter uma oitava maioria absoluta consecutiva, ninguém se atreveu a apostar que o PS/Açores registasse uma percentagem de votos superior ao PSD/Madeira. Foi isso, porém, o que aconteceu. E assim percebe-se melhor o comportamento de Jardim na noite eleitoral. Depois do espectáculo de circo e inaugurações em que investiu mundos e fundos, não conseguiu disfarçar o inconfessável: o rancor e o ciúme por ter sido ultrapassado pelo seu congénere socialista açoriano (o qual, ainda por cima, parece ter feito uma decepcionante campanha eleitoral). Tanto circo para ficar atrás de César? Impensável. A culpa só poderia ser mesmo da imprensa do continente (os tais «patetas» que tanto o atormentam) ou dos jornalistas da Madeira que não estão comprados por ele, e que, por isso, ameaça publicamente de saneamento.

Este é certamente mais um motivo de vergonha para a Madeira, a somar aos tantos que Jardim tem protagonizado ao longo de vinte e muitos anos. Mas a Madeira tem um motivo ainda maior para continuar a sentir-se envergonhada: é por Jardim, embora em recuo, ainda tratar os madeirenses como gado eleitoral -- e esse gado eleitoral ainda gostar de sê-lo, obediente, apático e servil, às ordens de um pastor cuja boçalidade e carácter rancoroso constituem uma ofensa aos valores mais básicos da boa-educação e da civilidade. Para não falar, é claro, de valores democráticos -- que é coisa ainda muito distante da vivência quotidiana dos madeirenses.

Vicente Jorge Silva

A coligação com o PP é um mau negócio eleitoral para o PSD?

Não concordo com a tese, que vem desde as eleições europeias, de que a coligação PSD-PP seja eleitoralmente prejudicial para o PSD. É de admitir que haja uma ligeira perda de votos, quando comparada com a soma que teriam os dois partidos separadamente, mas essa desvantagem pode ser compensada com a vantagem da atribuição de mandatos, que tira proveito da concentração de votos. Além disso, pode permitir à direita ganhar ao PS, quando o PSD não o pode fazer sozinho, o que pode ser essencial para saber quem forma governo. Por isso, não creio que a coligação tenha sido responsável pela humilhante derrota de Vítor Cruz nos Açores. Basta ver o que sucedeu na Madeira, onde, concorrendo separados, tanto o PSD como o PP perderam votos, em proveito do PS. O que sucede é que a coligação governamental nacional está manifestamente em perda, pelo que os dois partidos perderão sempre votos, coligados ou não.
Mas é evidente que a ideia de que a coligação é um mau negócio permite aos próprios (sobretudo ao PSD) amenizar as derrotas, imputando-as ao parceiro de coligação, e à oposição semear a cizânia nas hostes governamentais.

O mundo de Bush

«Muitos dos suspeitos de terrorismo detidos na base americana de Guantanamo foram sujeitos de forma regular e continuada a tratamentos coercivos passíveis de serem considerados tortura» - conta hoje o Público, referindo uma investigação do New York Times. Os pormenores são de estarrecer. Eis a (in)cultura de direitos humanos e o "rule of law" (Estado-de-Direito) à maneira de Bush!

«Bush is the Problem»

«América yes, Bush no» - é assim que o vespertino francês Le Monde sintetiza o resultado do inquérito de opinião realizado em dez países sobre os Estados Unidos, cuja análise pode ser vista neste site do Guardian de Londres. Na verdade, são três os principais resultados a registar:
a) Existe uma enorme rejeição de George Bush e uma correspondente preferência por John Kerry na disputa presidencial norte-americana; Bush sofreria derrotas humilhantes em vários deles (apenas 13% em Espanha, 16% na França, cerca de 20% no Canadá e no México, 22% no Reino Unido...).
b) Mantém-se porém uma apreciação muito positiva em relação aos Estados Unidos em todos os países, com taxas relativamente elevadas em vários deles;
c) No entanto, a imagem dos Estados Unidos degradou-se nos últimos anos por causa de Bush e em especial da guerra do Iraque, fortemente condenada em quase todos os países.
Isto permite tirar especialmente duas conclusões:
a) O sentimento dominante anti-Bush não decorre de nenhum "anti-americanismo", como defendem os partidários daquele;
b) Pelo contrário, é a política de Bush que arruina o retrato da América no Mundo e amplia o sentimento anti-americano.
O ainda presidente dos Estados Unidos é o principal factor do anti-americanismo. Uma reeleição de Bush para novo mandato só pode piorar a imagem e o crédito dos Estados Unidos no mundo. Como titulava um jornal sul-coreano sobre o inquérito, «Bush is the problem».

Soma e segue

Nas eleições regionais dos Açores o PS ganhou folgadamente à coligação de direita, reforçando mesmo a maioria absoluta, com cerca de 20% de diferença na votação, esmagando as veleidades do PSD de recuperar o poder. Na Madeira, como era previsível, Jardim voltou a ganhar confortavelmente mas em nítida perda (com a menor maioria de sempre e com votação inferior à de César nos Açores), tal como o PP, ao mesmo tempo que o PS obteve uma notável subida, encurtando significativamente o enorme fosso que o separava do PSD. Quem sabe, o princípio do fim do jardinismo...
Resultado: uma jornada fagueira para o PS e claramente negativa para a direita em geral e para o PSD em especial. Na estreia eleitoral de Sócrates e de Santana Lopes à frente dos respectivos partidos (pese embora a dimensão essencialmente regional destas eleições), é evidente que, depois do triunfo nas eleições europeias em Junho passado, o PS ganhou igualmente o segundo "round" do ciclo de eleições que termina daqui a dois anos com as eleições parlamentares, no fim da presente legislatura (se não for antes...).

domingo, 17 de outubro de 2004

Previsões à moda de Zandinga

Custa dizer que a culpa do que se passou nos últimos dias, em matéria de previsões sobre as eleições regionais nos Açores, foi da comunicação social. Não sei, não estive lá para saber se o que as televisões relatavam correspondia ou não ao que viam no local. Mas a sensação que ficava em quem as ouvia, aqui no continente, era a de que o lugar de Carlos César estava em perigo. Basta lembrar a importância que foi dada às declarações de Marcelo de Rebelo de Sousa. Que o tipo de intervenções do partido socialista, dizia o comentador em tom convicto e supostamente fundamentado, era um sinal indiscutível de que se sentiam perdedores.
Lição a tirar depois dos resultados: um esforço acrescido de isenção e objectividade aconselha-se para as próximas campanhas eleitorais. A bem do prestígio da comunicação social, muito em especial da que é paga por todos nós.