quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

Escarro

«Soberba dá-se nos abruptos incontinentes, traidores por feitio e natureza, que sempre se venderam por uma sacola de 30 dinheiros. É o pecado dos sem-vergonha, sem pátria e sem coluna. E dos inchados. E são muitos...». Assim discorreu o inevitável Luís Delgado no desafortunado jornal que o tem de suportar como administrador e colunista. Obviamente o inequívoco alvo do ódio do obcecado militante santanista (sublinhei desnecessariamnte o termo "abruptos") não vai responder a este insulto furtivo e rasteiro, quanto mais não seja por uma questão de dignidade política e intelectual. Mas lá que dá vontade de devolver o escarro à procedência, lá isso dá!

Referências

1. Artigos
«O País "Retalhado"», por Manuel Carvalho (editorial do Público)

2. Entre aspas
«Santana fez a sua plataforma e vai "eleger" quatro deputados com 0,51% dos votos [do PPM e do MPT], isto é, o Parlamento vai ter quatro personagens que não representam ninguém; e como se isso fosse pouco Nuno da Câmara Pereira assegura que a questão do referendo à monarquia já «foi tratada com o PSD» (A Capital). (...) Que mal fez este país a Deus para lhe ter saído um Santana Lopes na rifa?»
O Jumento

Prioridade II - Ajudar a Indonésia

Prioridade - apoio aos nossos compatriotas apanhados na crise. A seguir - prestar ajuda humanitária de emergência aos países e comunidades afectados.
As necessidades são tremendas, sem precedentes, na maior catástrofe humanitária de que há registo, segundo a ONU - a contagem dos mortos vai agora em 68.000, a dos semi-vivos necessitados ainda está por calcular. A comunidade internacional tem de ajudar, organizadamente para ser eficaz, repartindo tarefas - e ninguém pode substituir a inestimável experiência da ONU e suas agências, inclusivamente coordenando o direccionamento da ajuda não governamental.
Portugal tem escassos recursos, não pode chegar a todo o lado. Anuncia-se a partida de dois aviões transportando ajuda portuguesa, governamental e não governamental, com destino ao Sri Lanka - onde não temos sequer embaixada, apesar dos intensos laços históricos e humanos (é ver os Pereras, Gonçalves e Fernandes que testemunham dali para as cadeias de TV internacionais nestes dias). Diversas razões podem explicar esta escolha de alvo: é mais fácil (até pela língua), é mais perto, é mais acessível, é mais barato, começou por ser dado como o país mais afectado, recuperava duma longa guerra civil, aproxima-se a celebração do aniversário do primeiro encontro com portugueses há 5 séculos (apesar dos desencontro do último século, sobretudo por desinteresse nosso ...), tem potencial turistico, etc....
Mas se há país afectado que deveria ser considerado prioritariamente, do ponto de vista político, para a ajuda portuguesa, é a Indonésia. É o mais traumatizado e o mais necessitado. No Aceh, provincia já tão martirizada por 30 anos de conflito armado, sofreu-se agora a devastação primeiro do tremor de terra e depois do tsunami. Seguir-se-ão as epidemias, se não se enterram rapidamente os mortos, e os motins se não se dá rapidamente apoio mínimo a quem sobreviveu.
É uma zona até aqui vedada à comunidade internacional - mas a tragédia obrigou as autoridades indonésias a abri-la ao auxilío exterior, o que não se pode desaproveitar, sobretudo na perspectiva de ajudar também, do mesmo passo, a por termo ao conflito armado e reconstruir as relações dos acehneses com Jacarta.
O Aceh tem com Portugal laços históricos e humanos tão antigos e tão ou mais fortes que o Sri Lanka, como provam Lamno e outros «kampung portugis» agora, porventura, destroçados ou a precisar de auxilio básico e reconstrução. É, tenho a certeza, à semelhança de toda a Indonésia, uma zona onde a ajuda portuguesa será bem acolhida e muito especialmente apreciada.
Por outro lado Portugal continua a precisar de cultivar particulamente as suas relações com a Indonésia, para recuperar dos anos de conflito político e diplomático por causa da questão de Timor-Leste, pelas nossas valiosas relações bilaterais seculares e pelas perspectivas de relacionamento comercial e económico que desde 2000 se abriram ( e que Lisboa não soube, nem quis explorar e desenvolver, para minha maior frustração). E, também pelo impacte positivo que o bom entendimento Lisboa-Jacarta tem sobre o relacionamento entre a Indonésia e Timor-Leste.
Por Timor- Leste, em última análise, deviamos neste momento ter aviões de ajuda de emergência a partir para o Aceh.
Bem sei que o Estado não pode tudo financeiramente, sobretudo quando se acha tão mal governado nos últimos anos e tão desgovernado nos últimos meses. Mas pode estabelecer prioridades políticas. É para isso que serve o MNE. E a sociedade civil pode ajudar financeiramente o Estado: que se cheguem à frente os bancos e empresários, da Opus Dei ou dos «Compromissos Portugais» e outros que tais. Para darem sentido prático aos chavões de «responsabilidades social», «ética corporativa» com que já vão, volta e meia, cosmopolitanamente salpicando o discurso. Fico à espera de os ver estimular e financiar uma intervenção humanitária de emergência portuguesa no Aceh-Indonésia.

Ana Gomes

Prioridade I: Apoiar os portugueses afectados

Prioridade I: apoio aos nossos compatriotas apanhados no horror do tsunami asiático. Os dramas dos vivos e dos mortos ainda mal se começaram a saber, já nos parte o coração a dor da mãe a quem a onda roubou dos braços a bébé.
A maioria dos portugueses veranevam na Tailândia. Para lá confluem os repórteres dos media nacionais, incluindo uns cujos dotes reporteiros conheço de gingeira... Compensa sempre mediaticamente atirar sobre a embaixada - ninguém se interessa é pelos meios (humanos, materiais e logísticos) que ela terá à partida ao seu dispôr para acorrer a qualquer emergência, sem falar numa catástrofe destas dimensões, e sobretudo quando ocorre num local distante... Meios que não passam, necessariamente, pela presença do embaixador, por muito útil que possa ser até para alimentar informativamente os repórteres. Meios cuja gritante falta é geralmente suprida pela dedicação, carolice, engenho, imaginação e solidariedade extenuada dos funcionários na linha da frente, seja na embaixada, seja nas células de crise montadas no MNE. Desunhando-se para localizar turistas que quando chegam, naturalmente, não avisam as embaixadas dos hoteis onde vão ficar, das praias onde vão passear...
Vêm-me à cabeça as condições que tivemos para intervir na Indonésia, sempre que houve crises em Timor-Leste e em Timor-Ocidental, nos anos de 1999 e 2000. E em 2002, no horror do atentado de Bali. Basta dizer que parti para Jacarta em Janeiro de 1999 com três meses adiantados de ajudas de custo no bolso, sem fundos para funcionamento dos serviços e sem qualquer fundo para uma emergência, que só no auge da crise de Setembro de 1999 foi disponibilizado (depois do embaixador da Holanda me emprestar dinheiro para pagar - adiantado - o avião que evacuou os jornalistas portugueses atacados no famigerado Hotel Makhota). Mas os problemas nunca são apenas financeiros - são sobretudo de falta de meios humanos qualificados (designadamente na comunicação em língua local) e apoio logístico, em especial se a tragédia ocorre em zonas distantes da capital onde temos embaixada ou serviços consulares.
Todas as atenções dos nossos media estão centradas na Tailândia, compreensivelmente. Mas não haverá portugueses noutros países apanhados pela tragédia? Ninguém se questiona sobre o apoio de que necessitam, se lhes estará a ser prestado pelas embaixadas onde as tenhamos, se estas terão meios para actuar? Se lhes estão a valer outras embaixadas da UE?

Ana Gomes

E os «orang portugis» no Aceh ?

"Você é portuguesa? Então tem de ir a Lamno, "kampung portugis" (aldeia portuguesa) a 60 km daqui, na costa..." disse-me o Governador, em Banda Aceh, brilhando-lhe os extraordinários olhos azuis. E disseram-me todos os outros interlocutores acehneses, excitados, contando a lenda do barco português naufragado que trouxera a terra os fundadores da aldeia, séculos atrás. Foi em Março de 2000, na visita da missão europeia que, valendo-me da nossa presidência da UE, consegui «impôr» ao Aceh, a provincia em conflito, fechada ao exterior desde 1974.
Não pude então desviar caminho até Lamno. E nunca cheguei a concretizar o projecto de lá ir. E hoje se calhar os "orang portugis" (os "portugueses") de Lamno estão todos mortos, varridos do mapa pela fúria do tremor de terra, primeiro, e do tsunami depois... Como mortos podem estar os habitantes das outras «kampung portugis» que - vim depois a descobrir, por amigos acehneses em Jakarta - existiriam noutras zonas do Aceh, designadamente em Meulabo, na costa oeste - onde ainda nem sequer ninguém conseguiu chegar para avaliar os estragos e socorrer sobreviventes.
Em 2000 fiz seis horas de carro pela costa norte da ilha de Sumatra, entre Lhoksomawe e a capital do Aceh, por uma estrada serpenteando frágeis aldeias de pescadores nas praias, campos verdejantes, povoações queimadas (pelos militares), montanhas prodigiosas à esquerda. Em Banda Aceh encontrei o bulício citadino sob ocupação militar, a famosa mesquita, homens e mulheres bonitos, exalando dignidade, afáveis para com os estrangeiros, desconfiados, magoados para com os javaneses. O porto pitoresco, a fábrica de cimentos da Lafarge, a Universidade Kuala Tripa, a RATA - ONG local de apoio às vitimas da tortura - , as aldeias semeadas de mesquitas, a casa da heroína Cut Niah Dihn num cenário idílico, palmeiras, arrozais verdes, o mar azul espelhado a arrulhar por perto...
Mas nos últimos dias, pela CNN, só vejo destroços, devastação, cadáveres alinhados nas ruas cobertos de panos e plásticos, mulheres e homens destroçados à procura de familiares desaparecidos entre os mortos, tapando o nariz por causa do cheiro. Imagino as tremendas necessidades de tudo para os semi-vivos arranjarem forças para enterrar os mortos e começar a limpeza e reconstrução: água potável, comida, medicamentos e apoio médico, tectos, combustível, comunicações. De organização e experiência de recobrar de tragédias, infelizmente, não têm falta os acehneses.
No centro da cidade, resta de pé a mesquita, imponente, belissima, esmagadora, tudo arrasado em redor: Alá, Deus, um poder do além, o poder da Natureza, sei lá eu, impante, reafirmado sobre a fragilidade da condição humana.
32.500 mortos confirmados, são as últimas noticias, pode chegar aos 40.000, disse o Vice-Presidente Yusuf Kalla - e ele tem experiência, sei que se pode confiar nele. Quem vai alguma vez conseguir contabilizar toda a miudagem que habitualmente brincava nos areais, salpicando a ondulação azul?
Vejo o atordoamento, as olheiras do Presidente Bambang, as mãos abertas a rezar, humildade e impotência diante de tamanha devastação. A experiência de direcção militar já em acção, vitalmente. Abriu o Aceh aos correspondentes de imprensa internacional e ao auxilio exterior. Que diferença da outra senhora - anda no meio das pessoas, afaga-as, ouve-as!
Que ao menos tão terrível catástrofe contribua para reconciliar os acehneses com a Indonésia.

Ana Gomes

Saudade da Bahia

Posted by Hello

Capa do CD com uma selecção das melhores músicas de Dorival Caymmi -- incluindo naturalmente a "Saudade da Bahia" -- numa gravação efectuada ao vivo pelos três filhos do compositor baiano, por ocasião do seu nonagésimo aniversário. Um presente recente dos meus amigos de Salvador. Para ouvir quando se tem saudade da Bahia (e só não tem quem nunca lá foi...).
(Clicar na imagem para a ver em tamanho maior).

Memórias acidentais -- As "eleições" de 1969

A evocação de Henrique de Barros (ver post abaixo) trouxe-me à memória o episódio das eleições de 1969 para a Assembleia Nacional do "Estado Novo" (decorreram 35 anos em Outubro passado), que a oposição democrática resolveu disputar, aproveitando a frustre "abertura marcelista" de então para agitar a opinião pública contra o regime. As dificuldades eram enormes. Apesar do alargamento do sufrágio então decretado, eram uma minoria os recenseados, com presença esmagadora dos funcionários públicos, dos militares e agentes das forças de segurança, dos religiosos e dos apaniguados do regime, todos oficiosamente inscritos, por força da lei ou do zelo da Legião Portuguesa. Muitos oposicionistas não constavam dos cadernos, por terem direitos políticos suspensos, ou por simples corte arbitrário das autoridades, que manipulavam livremente o recenseamento eleitoral. A massa do povo estava fora da vida política.
Como a lei não previa que as listas concorrentes constassem de um boletim único, a oposição tinha de imprimir os seus próprios boletins de voto e distribui-los pelos eleitores, o que era uma tarefa trabalhosa e dispendiosa, e só cobriu parte dos eleitores inscritos. Para que os boletins de voto fossem iguais aos da Acção Nacional Popular (novo nome da antiga União Nacional, o partido oficial), conseguimos saber pelos tipógrafos comunistas clandestinos como seriam os dela, tendo depois feito imprimir os nossos com o mesmo tipo de papel e de impressão. Qual não foi a nossa surpresa quando nas vésperas da eleição recebemos os boletins de voto da ANP, impressos num papel de textura e de tonalidade ostensivamente diferentes e com uma impressão facilmente reconhecível pelo tacto. Tinham alterado à última da hora os boletins de voto, para os diferenciarem propositadamente dos nossos, de modo a inibir quem tivesse receio de ser identificado como votante da oposição...
Fui designado delegado da CDE numa das assembleias de voto, que teve lugar num amplo salão da então União de Grémios dos Lojistas de Coimbra, um organismo corporativo oficial. Mas a mesa era composta exclusivamente por agentes do regime e presidida por um conhecido legionário sem escrúpulos. A minha cadeira de delegado estava a mais de 5 metros da mesa, pelo que era impossível fiscalizar o que quer que fosse. Os meus veementes protestos só me valeram uma ameaça de expulsão. No final impugnei por escrito todos os votos da ANP, por serem manifestamente reconhecíveis pelo tacto e pela transparência do papel, violando por isso o segredo do voto, pois permitiam distinguir também os votos da oposição, por comparação. Os meus protestos nem sequer foram decididos. A mesa encerrou os trabalhos com a proclamação dos resultados, naturalmente com a vitória fácil do partido oficial. Assim foram as penúltimas eleições no Estado Novo!
Foi um erro a ida da oposição até às urnas (o que acontecia pela primeira vez em eleições para a AN na história do "Estado Novo"), dando um arremedo de legitimidade ao "marcelismo". Era evidente que o regime não se transformaria voluntariamente pela via eleitoral. Em 1973, aprendida a lição, a oposição fez novamente campanha mas retirou-se nas vésperas do sufrágio. Era a última fantochada "eleitoral" solitária do Estado Novo. O regime entrara em contagem decrescente para o seu fim.

Susan Sontag (1933-2004)


Foi através do seu ensaio sobre a fotografia (num tempo em que o tema me apaixonava) que cheguei à demais obra ensaística e literária desta multifacetada criadora que foi Susan Sontag: ensaísta, novelista, dramaturga, realizadora de cinema, encenadora de teatro. A sua morte deixa também um vazio entre os activistas dos direitos humanos, da liberdade de expressão e de criação literária e da paz. A sua última batalha foi a denúncia da guerra do Iraque e do fosso politico-cultural entre os Estados Unidos e a Europa. Enfim, desapareceu uma dos grandes intelectuais americanos das últimas décadas.

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

Os poderes presidenciais

Ao contrário do que ele mesmo defendeu, o Presidente da República não deve ter o poder de nomear as "autoridades reguladoras independentes", porque se trata de entidades administrativas, embora pudesse e devesse ter o poder para nomear outros titulares de cargos públicos, na área judicial e da União Europeia. Os argumentos a favor desta tese podem ser encontrados no meu artigo de hoje no Público (também recolhido, como habitualmente no Aba da Causa, com link na lista de blogues aqui ao lado).

Vamos voltar a acreditar nas regiões?

É, de facto, uma excelente notícia, a do nome de Braga da Cruz para cabeça-de-lista do Partido Socialista pelo distrito do Porto. Subscrevo inteiramente o comentário de VM sobre os méritos pessoais e os desígnios de Braga da Cruz, quer no apego à causa da regionalização, quer no repúdio ao modelo de pacotilha ensaiado por Isaltino de Morais.

A herança da Santana Lopes

"A economia portuguesa à beira de nova recessão" -- tal é manchete de hoje do Jornal de Negócios.
Depois de ter recuado mais de 1% no terceiro trimestre do ano corrente, os indicadores económicos disponíveis apontam para a continuação do recuo no quarto trimestre, que agora termina, o que caracteriza tecnicamente uma nova recessão (dois trimestres consecutivos com crescimento negativo). Ainda mais grave do que a recessão é a irresponsável lenga-lenga da "retoma", que Santana Lopes e os seus apaniguados insistem em vender aos portugueses, contra todas as evidências, e ainda mais o criminoso anúncio do "fim da austeridade", decretado há poucas semanas pelo primeiro-ministro, a acompanhar os levianos sinais de descida dos impostos pessoais e as promessas de aumento do poder de compra.
Eis a herança da coligação: nem consolidação orçamental nem retoma económica. Só sobrou a demagogia, a leviandade e a desonestidade política. Tal é a verdadeira marca da coligação governamental e, em especial, do seu presente líder: incompetência, irresponsabilidade e descrédito. É isso que está em causa nas próximas eleições.

Referências

1. Textos
"Referendo a Santana", de Miguel Coutinho
"Os equívocos da política económica", por Luís Mira Amaral, no Diário Económico (indisponível na edição online)

2. Entre aspas
«Os dados relativos à parte final de 2004 mostram, com toda a clareza, que o mito da retoma se esfumou e que a competitividade da economia continua a agravar-se. Para 2005, o melhor que podemos esperar é que nos livre dos simplismos que pretendem resolver à martelada problemas complexos e nos reserve um pouco mais de bom senso, de honestidade política e também da sageza necessária para ajudar a encontrar soluções reais para os problemas, em vez daquela com que alguns intelectuais se comprazem em recordar a nossa arraigada incapacidade para os resolver.»
"Tempo de Balanço", por Teodora Cardoso.

Diário eleitoral (2)

A candidatura de Braga da Cruz a encabeçar a lista socialista do Porto -- hoje noticiada pelo Jornal de Notícias -- poderá ser um sinal de que o PS vai retomar o dossier da regionalização se ganhar as eleições? Antigo presidente da Comissão de Coordenação Regional do Norte, conhecido adepto da regionalização -- no modelo das cinco macro-regiões correspondentes às circunscrições territoriais das actuais Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) --, crítico da organização intermunicipal de geometria variável lançada pelo Governo PSD-CDS, o ex-ministro de António Guterres bem pode protagonizar um novo impulso regionalizador no futuro Governo.
No entanto, a retoma do tema da regionalização exige a maior prudência, importando tirar as lições do desaire no malfadado referendo de 1998. Ninguém deve ter ilusões de que um novo referendo nos mesmos termos e nas mesmas condições está igualmente condenado. As pessoas não votam mapas abstrusos nem soluções desconhecidas, cujas vantagens e desvantagens não possam medir. Para ter êxito, a regionalização tem de ser o desenvolvimento "natural" das estruturas para-regionais existentes, designadamente as CCDRs e demais organismos da administração regional do Estado. Importa proceder à desgovernamentalização e democratização progressiva das CCDRs, conferir-lhes personalidade jurídica própria (como "institutos públicos territoriais") e ampliar as suas atribuições e os seus recursos financeiros. No final só há que referendar a sua transformação em autarquias territoriais regionais, com órgãos directamente eleitos, um "pequeno" passo que não será tão vulnerável aos fantasmas anti-regionalistas como foi a desastrada tentativa de há mais de 6 anos.
Nesta matéria toda a precipitação pode ser fatal e a demora, virtuosa.

A difícil transição democrática

A vitória de Iuchenko nas eleições presidenciais da Ucrânia parece representar a retoma do processo de transição democrática, que tinha sido "capturado" por uma autocracia após a independência, há mais de uma dúzia de anos. Resta saber se as condições económicas e políticas possibilitam a estabilização e a consolidação democrática desse País saído da desintegração da antiga URSS.
No antigo mundo comunista há processos de democratização bem arrastados no tempo e de êxito ainda incerto (como mostram também os casos da Bielo-Rússia e da própria Rússia). A mudança ucraniana pode bem significar o reinício da revolução democrática no extremo Leste Europeu.

Memórias acidentais - Henrique de Barros



Recebi há dias a fotobiografia de Henrique de Barros organizada pela Comissão executiva da comemoração do centenário do seu nascimento, a cuja comissão de honra me aprouve pertencer.
O seu nome e a sua obra de economista agrícola eram conhecidos de todo o estudante de esquerda nos anos 60. Mas foi somente em 1969 que o conheci pessoalmente, no âmbito da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Coimbra, que o convidou para cabeça de lista da oposição democrática às "eleições" desse ano para a Assembleia Nacional, realizadas no contexto da incipiente (e depois frustrada) "liberalização marcelista", convite que ele aceitou com notável galhardia, tanto mais que, embora sendo natural de Coimbra, vivia desde criança em Lisboa. Recordo a sua paciente firmeza nos embates internos com os raros trotskistas e maoistas que contestavam a ampla convergência das forças oposicionistas, bem como a sua seriedade e discrição nas poucas sessões públicas que a escassez de meios e as limitações oficiais permitiam realizar.
Voltei a encontrá-lo depois da revolução na Assembleia Constituinte (1975-76), para a qual ele tinha sido eleito pelo Partido Socialista, e da qual viria a ser eleito Presidente. Nas conturbadas circunstâncias de então foi sempre uma voz de equilíbrio, moderação e seriedade, que contribuiu decisivamente para o êxito dos trabalhos. A sua assinatura de presidente da Constituinte consta do exemplar autêntico da Lei Fundamental de 1976. Não foi por simples deferência que no final da missão foi aprovado por unanimidade um voto de reconhecimento em sua homenagem.
Ministro de Estado no primeiro Governo de Mário Soares (1976), marcava por vezes a sua presença na AR, intervindo em alguns dos debates mais importantes dessa legislatura decisiva (em que também participei, na oposição...), por exemplo na controversa lei da reforma agrária (que ficou conhecida por "Lei Barreto", do nome do então ministro da Agricultura, António Barreto). Mas a sua obra governativa ficaria sobretudo associada à criação do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, cuja defesa pessoalmente assumiu em São Bento e que culminava uma vida de dedicação à causa do cooperativismo, na senda de um dos seus mestres, António Sérgio.
É por tudo isto que entre os "pais fundadores" da actual República democrática tem de se incluir necessariamente Henrique de Barros.

(Pode ver a gravura em tamanho maior clicando sobre ela.)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2004

Referências

1. Textos
"O PS, as Listas e o Poder", por Rui Namorado.
"And the Olho Vivo Goes To...", por Eduardo Cintra Torres.

2. Entre aspas
«A lei deve interferir sem pejo na orgânica geral dos partidos e impor-lhes uma maior democraticidade interna, tão essencial à concorrência das ideias e dos projectos como à renovação das elites. Estamos mal servidos de políticos, reconheça-se, porque também estamos mal servidos de democracia na esfera interna dos partidos.»
"A Renovação da Classe Política", por Rui Valada.

A Ambar do nosso descontentamento

Há quarenta anos, a marca Ambar animava as caricas dos putos da minha rua com as caras dos seus ciclistas, protagonistas secundários das Voltas a Portugal da era analógica. Lembro-me do Dinis Silva, do Wilson Sá e de outros cromos que o destino não quis transformar em campeões, mas que marcaram a memória da minha geração. Mais tarde, já adulto, Ambar foi sinónimo de agendas bem engendradas, daquelas onde numa só folha se podia fazer a programação semanal e cada dia era dividido nas suas dez horas úteis. Durante os tempos pré-globais, a Ambar produziu as recargas com que os seus inúmeros clientes substituíam, ano após ano, o caderno de registos passados, de um modo simples e eficiente. Em 2002 acabaram-se as recargas e, em seu lugar, apareceram novos formatos de capa rígida, três vezes mais caros. À falta de concorrência, passámos (nós, os das agendas analógicas) a ter de efectuar penosas operações de corte e colagem, que só a devoção à marca e ao melhor formato do mundo justificavam. Este ano, após incessantes buscas nas papelarias tradicionais lisboetas, lá descobri por fim (na Rua do Comércio) o caderno desejado, agora mais caro, mais raro e mais modernaço. Ao que soube, a Ambar reduziu ao mínimo (a três) o número de modelos e prepara-se, em 2006, para liquidar o formato que tantos clientes fidelizou. Não conheço os manuais de gestão em que a empresa se terá inspirado nem a sua noção de serviço, mas sei que muitos dos seus fãs desertarão sem hesitações diante do primeiro concorrente chinês que se lhes apresentar em Dezembro de 2005. Malvado mundo global!

Diário eleitoral (1)

O procedimento eleitoral das eleições de 20 de Fevereiro está em marcha. Foi publicado pela Comissão Nacional de Eleições o mapa oficial da distribuição territorial dos 230 deputados pelos 22 círculos eleitorais, correspondentes aos 18 distritos administrativos do Continente, às duas regiões autónomas e aos dois círculos de residentes no estrangeiro (Europa e resto do Mundo). Tirando estes dois últimos, que legalmente elegem dois deputados cada um, independentemente do número de eleitores neles recenseados (em geral baixo), os demais 226 deputados são repartidos pelos círculos eleitorais do território nacional proporcionalmente ao número de eleitores de cada um. Por isso pode haver variações de eleição para eleição, se tiver havido variação relativa da população. Foi o que sucedeu desta vez, em que o Madeira elege mais um deputado (passa a ter 6) em prejuízo de Portalegre, que agora elege somente dois. Em contrapartida Lisboa continua a eleger 48 deputados e o Porto, 38.
Sendo proporcional o nosso sistema eleitoral, como pode haver um mínimo de proporcionalidade na repartição dos deputados pelos partidos concorrentes com círculos de dois deputados? E como pode haver um conhecimento mínimo dos candidatos e dos deputados eleitos com listas de dezenas deles? Independentemente das grandes reformas eleitorais até agora falhadas, não seria de pensar em fundir os círculos mais pequenos (Trás-os-Montes, Beira Interior e Alentejo) e fraccionar os círculos maiores?

Almas gémeas

Respigando as notícias nacionais durante a minha ausência no estrangeiro topo com os rasgados elogios mútuos de Alberto João Jardim e de Pinto da Costa, por ocasião de uma visita deste à Madeira. Para completar a ideia de Jardim na presidência da República só faltava mesmo imaginar Pinto da Costa como primeiro-ministro! Estão bem um para o outro. Só o PS portuense parece não se dar conta disso, no seu continuado e interesseiro "flirt" com o dirigente do F. C. Porto...

A incógnita

Num texto do Público de terça-feira passada sobre a ideia de José Sócrates de retomar a co-incineração, presumivelmente na cimenteira de Souselas, perto de Coimbra -- texto de que só agora tomei conhecimento, por ausência no estrangeiro -- escreveu Ana Sá Lopes:
«A incógnita reside no protagonista desejado pelos socialistas para cabeça-de-lista por Coimbra: Vital Moreira, que chegou a ser deputado nos tempos do guterrismo, "rompendo" depois e abandonando o Parlamento. Vital foi contra a co-incineração e tomou várias posições públicas - nomeadamente em artigos do PÚBLICO - contra a ideia defendida pelo então ministro do Ambiente, José Sócrates.»
Importa desfazer a incógnita: (i) mantenho a minha posição crítica sobre a co-incineração em geral e sobre a sua localização em especial; (ii) o meu apoio ao "Fórum Novas Fronteiras" não envolve a concordância com todas as posições do PS (são conhecidas as minhas divergências noutros pontos, por exemplo no caso das SCUT); (iii) a minha hipotética candidatura nas próximas eleições não tem nenhum fundamento.

Promiscuidades jornalísticas

«[Sobre o seu post acerca de um mail do jornalista João Oliveira] é sintomático que o autor do e-mail, João Manuel Oliveira, seja um assessor em efectividade de funções. A displicência com que faz as acusações (com alta probabilidade, todas verdadeiras) também é sintomática. Que isto se escreva e nada aconteça é, igualmente, sintomático. Finalmente, não deixa de ser sintomático que alguns comecem a estrebuchar quando o CJ avança, sem tibiezas, na defesa da dignidade da profissão.
O comentário à «entrevista» a Morais Sarmento não foi o primeiro sobre a promiscuidade entre assessores, agências de comunicação e jornalistas publicado no CJ On Line.
Sugiro, por exemplo, uma visita a [este sítio

(João Alferes Gonçalves)

domingo, 26 de dezembro de 2004

Foguetório existencial

Ao fim de seis meses como director de um jornal diário, e absurdamente embalado pela nostalgia natalícia, resolvi fazer um balanço interior do que em mim mudou nestas semanas de delírio. Poupo os detalhes da alma, ainda assim o essencial. Mas sacrifico à partilha, os desabafos a que, por conveniência de linguagem, reduzo, desde já, a uma espécie de foguetório existencial sem a mais pequena importância.
Ainda assim, devo dizer, os delírios perturbaram-me a ponto de uma noite mal dormida, de 25 para 26 e sem qualquer interferência, antes assim fosse, de uma qualquer rena desorientada por ter perdido o rasto do grupo dos milagres.
Em seis meses - quando supostamente estaria condenado à construção de um pacto com a candente sociedade de informação -, sinto-me mais ignorante, desinteressante e amargo do que antes de ser director de A Capital. Não, não me interpretem mal. Leio todos os jornais portugueses e alguns estrangeiros, estou mais de 12 horas ligado a canais de informação, o meu computador apita quando cai alguma informação da agência e sou capaz de falar de petróleo, macroeconomia, situação política na Ucrânia, Bush, eleições portuguesas, subsídios do teatro... Mas em tantas semanas li um único livro, fui três ou quatro vezes ao cinema - sempre à meia-noite -, perco as peças de teatro dos meus amigos, perco os meus amigos, almoço com políticos, homens de negócios, gente à procura de emprego e que não vê motivo para que eu não seja portador de boas notícias. Raramente janto.
Mas estou feliz. Ainda assim estou feliz. Vou fechar a edição de amanhã. Na primeira página, a fotografia do homem que premiámos como personalidade do ano na cultura: Nuno Teotónio Pereira. Depois, sou capaz de ir ver Alexandre, o Grande. Ou, então, quem sabe, regressar aqui. E gastar palavras à espera que, desse lado, continue a sentir a sua presença.

Luís Osório

sábado, 25 de dezembro de 2004

Ainda há momentos fantásticos

Felizes dos que tiveram hoje a oportunidade de assistir, na RTP 2, a mais um magnífico espectáculo do Cirque du Soleil, o Varekai, actualmente em digressão pela costa leste dos Estados Unidos. E um cumprimento especial a José Pacheco Pereira pelo seu sublime post natalício, no Abrupto, sobre as fronteiras do universo. A qualidade do texto e da fotografia de Saturno obtida pela sonda Cassini dispensam quaisquer outros comentários.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2004

Pinto da Costa olé!

Para quem alguma vez se deixou embalar pelos cantos regionalistas do presidente portista, a recente visita do grémio das Antas à Madeira permitiu desfazer todas as dúvidas sobre a elevação das suas ideias políticas. Pinto da Costa revelou finalmente o que lhe vai na alma - uma profunda devoção por Alberto João Jardim. Viva o anarco-populismo atlântico! Morte a Lisboa e às suas gentes mouras e cubanas!

Carta ao Menino Jesus

Eis os meus pedidos natalícios, aqui ao lado, no Aba da Causa.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Co-imolação?

O frenesim de Luís Nobre Guedes nesta fase terminal da governação não tem passado despercebido a ninguém, a começar pelo próprio Santana Lopes. Aparentemente, os dois ter-se-ão desentendido, à antiga portuguesa, a propósito da requentada polémica sobre os resíduos tóxicos. A caminho da co-imolação?

segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

Eleições à força

Se a violência que reina no Iraque tivesse lugar em qualquer outro país do mundo, já a comunidade internacional, com os EUA à cabeça, teria exigido o adiamento das eleições. Mas Bush acha que não. E os restantes chefes de Estado calam-se.
Fingir é a marca anglo-americana em tudo o que diz respeito ao Iraque: fingir que existiam armas infernais, fingir que tinham cobertura da ONU para invadir o país, fingir que as tropas estrangeiras eram desejadas, fingir que o país está pacificado e em reconstrução, fingir que o petróleo iraquiano não lhes interessava mesmo nada.
Agora, mais um fingimento: há condições para proceder a eleições democráticas no Iraque. E a seguir? Quererão convencer-nos de que a ONU deve assumir os cacos que deixam por todo o país?

domingo, 19 de dezembro de 2004

Jaime Ramos de costas

O episódio da troca de mimos entre Jacinto Serrão, líder da bancada socialista madeirense, e Jaime Ramos, líder da clique jardinista primária, deixou os continentais boquiabertos. Não pelo nível da discussão, a que a pérola do Atlântico há muito nos habituou, mas por dois factores singulares: o primeiro, a coragem de alguém pôr a nu, nos mesmos modos de Alberto João e seus sequazes, as singularidades do progresso madeirense; o segundo, o facto de a reportagem televisiva, a cargo da RTP Madeira, ter tido o primoroso cuidado de nunca ter filmado Jaime Ramos de frente durante a altercação parlamentar. É caso para dizer que há conluios traseiros na terra de Jardim.

Lobotomia: sim ou não?


O inefável ministro Arnaut transmitiu, em entrevista ao Expresso desta semana, o seu pensamento profundo sobre a actual situação política. O homem perorou sobre tudo e todos, da forma directa e cristalina a que nos habituou, não poupando ganchos aos amigos e aos inimigos.

Por mim, aceito o desafio de Arnaut: há que confrontar os políticos com questões essenciais, por forma a que os eleitores possam decidir conscientemente. Lanço, pois, uma questão moderna: alguns segmentos mais extremistas defendem a lobotomia compulsiva para os casos manifestos de indigência mental. O que pensa sobre a matéria o ministro José Luís?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

Decadentes mas felizes

Ou a preocupante situação da economia portuguesa, aqui ao lado, no Aba da Causa. Boas Festas.