sexta-feira, 8 de julho de 2005

Liberdade e responsabilidade

Se um jornalista publicar como verídica uma história que ele mesmo inventou, deverá essa infracção dontológica ser sancionada? Eis o tema do meu artigo desta semana no Público, agora recolhido na Aba da Causa, como habitualmente.

O mundo não está está mais seguro

No final da semana passada estive em Londres, numa delegação do Parlamento Europeu que foi discutir com os Ministros Jack Straw e Douglas Alexandre, com parlamentares e com funcionários do Foreign Office, o programa da presidência britânica da UE. Ficamos num hotel em Westminster, a dois passos de Downing Street e do Parlamento. E durante os trajectos a pé entre as reuniões - caminhos que eu conhecia de cor, do meu trabalho na embaixada em Londres entre 1991 e 1994 - não pude impedir-me de pensar como aquela zona seria alvo prioritário de um ataque terrorista para qualquer grupo "franchised" da Al Qaeda. E também de admirar, ao mesmo tempo, como as medidas de prevenção e controle adoptadas pelas autoridades - que sabiam tal ataque inevitável - não haviam coarctado a liberdade de circulação na zona, nem obstruído as entradas nos edifícios públicos, incluindo o Parlamento.
A experiência de viver em Londres na época dos ataques bombistas do IRA e sobretudo depois, na Indonésia onde já operava a Jemaah Islamyia, ligada à Al Qaeda, tornaram-me particularmente sensível à necessidade de lutar contra o terrorismo por todos os meios, incluindo policiais e militares (e a cooperação internacional na «intelligence» é o mais fundamental instrumento e muito há ainda a fazer, designadamente no plano europeu). Não se trata da «guerra ao terrorismo» primária, ineficaz e contraproducente que a Administração Bush propagandeia. Trata-se de lutar inteligentemente - o que significa compreender que a ameaça é global e que o desafio é sobretudo político e ideológico - e daí que a política externa da Europa, dos EUA e de todas as democracias ocidentais tenha uma importância acrescida. Porque não se pode fazer o jogo dos terroristas, em casa ou fora dela, em Guantanamo, Abu Grahib ou em Nova Iorque (onde uma jornalista do NYT foi hoje detida por recusar violar o segredo profissional, denunciando fontes).
Por isso, entre outras razões, fui muito crítica da invasão do Iraque. Intui-lhe o impacte devastador, ao instigar a propaganda dos terroristas e fornecer-lhes mais recrutas por todo o mundo islâmico (incluindo o residente na Europa), além de mais terreno para actuar (a própria CIA então também avisou e ainda recentemente confirmou a materialização desses prognósticos no Iraque). E ao minar-nos as democracias, o Estado de direito, o direito internacional, de dentro e por dentro.
E por isso, também, logo critiquei o desvio das atenções e dos meios militares, policiais, diplomáticos, económicos e outros da eliminação de Osama Bin Laden, dos seus seguidores e dos seus anfitriões taliban no Afeganistão e Paquistão. Desvio que a invasão do Iraque implicaria, como implicou. E a recuperação terrorista no Afeganistão aí está, o pobre Karzai confinado a oficiar em Cabul, os senhores-da-guerra de novo a dominar o país, transformado, segundo peritos da NATO, numa enorme base de ADMs assestadas à Europa: o ópio, de onde é extraída 90% da heroína infiltrada nos mercados europeus.
Responsabilizei e responsabilizo a Administração Bush, mas também Blair, Aznar, Berlusconi , Barroso, Balkenende e todos os aqueles que arrastaram ou deixaram arrastar o mundo para a aventura do Iraque e desviaram o foco do Afeganistão. Por desvalorizarem as desastrosas consequências no fomento do terrorismo que tantos anteciparam. Por não cuidarem antes de, por outro meios, ajudar os iraquianos a livrarem-se do odioso regime de Saddam. E por abrirem caminho ao ataque e ao questionamento dos valores democráticos nas sociedades ocidentais.
Mas isso não me impediu, desde então, de também expressar o meu apoio a outras políticas ou posições de uns ou outros, se as entendi justas e positivas. É o caso do que o PM Blair pretende na reestruturação orçamental da UE ou nas suas propostas para o combate à pobreza e ajuda ao desenvolvimento, ou contra o aquecimento global que levou ao G-8. Quaisquer que tivessem sido as suas motivações.
A independência crítica, que espero nunca perder, não é compreendida por quem veja o mundo a preto e branco ou dividido em clubes políticos ou futebolisticos. Ainda ontem, um colega (socialista, português) brincava comigo, estranhando que eu pudesse ora criticar duramente Tony Blair, ora apoiá-lo. E insistia que graças a Blair e ao seu patrocínio da invasão do Iraque «o mundo estava agora mais seguro!». Contestei, atirando-lhe "Espere pela "bomba suja" que, mais dia menos dia, algum grupelho afiliado à Al Qaeda deflagrará algures nesse mundo! Espere pelo próximo ataque bombista contra os EUA ou qualquer alvo europeu!...".
Tragicamente, nem 24 horas passadas, o meu presságio confirmava-se: as ruas de Londres onde eu ainda há dias passeava à chuva, tornavam-se cenário de mais uma bárbara retaliação terrorista.

Terror, com terror se paga?

Mais uma vez o horror. A cobardia do terrorismo. Em Londres, agora. Custa-me ainda mais, confesso, do que o que sofri com e pelos infelizes iraquianos, que imaginei aguardando os ataques dos aviões americanos em 2003 e sei sob permanente ameaça terrorista desde então. Porque me atinge pessoalmente. Porque, como antes em Nova Iorque ou Madrid, foi numa cidade que faz parte da minha vida. Ali vivi bem, anos felizes. Ali tenho tantos, tantos amigos. Que ainda não sei se sobreviveram.
Choque. Tristeza. Solidariedade com o povo britânico. E muita raiva - com vários destinatários, mas antes de mais contra os instigadores dos bombistas.
E, também, tremenda admiração pela extraordinária fibra combativa e desafiadora dos londrinos. Que amanhã voltarão aos aeroportos, portos, estações de comboio, metros, autocarros e ruas, como disse o Mayor Ken Livingstone. Porque percebem que não se pode fazer o jogo dos terroristas, que visam aterrorizar-nos a todos e por-nos a destruir a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos em particular. E por isso se empenham em provar que terror se deve antes de mais pagar com destemor.

quinta-feira, 7 de julho de 2005

Reescrever a história

A nossa direita ideológica insiste em rever a história do 25 de Abril e do período revolucionário. Desta vez é Luciano do Amaral que, num artigo no Diário de Notícias sobre o papel do general Spínola, omite aquilo que ficou conhecido por "Golpe Palma Carlos" (13 de Julho de 1974), do nome do primeiro-ministro do I Governo provisório que o congeminou, mas cujo projecto recebeu todo o apoio do então presidente da República, Spínola, e correspondia obviamente aos desígnios deste.
Ora esse plano constituía uma total subversão do programa do MFA quanto à transição democrática, cuja peça fundamental era a eleição de uma assembleia constituinte no prazo de um ano, como veio a suceder, mantendo-se até lá instituições provisórias de poder político. A manobra spinolista passava pelo imediato plebiscito de uma constituição provisória (proposta, é claro, pelo próprio...) e do próprio Spínola como presidente da República, com o consequente adiamento indefinido das eleições para a assembleia constituinte e da Constituição e a emergência pessoal do Presidente da República (ou seja, Spínola) como único poder "legítimo", sem qualquer contrapoder.
Tratava-se caracterizadamente de um modelo de autoritarismo plebiscitário de tipo "sidonista", tendente a legitimar a concentração do poder no general e no restrito "grupo spinolista", tal como ele desejara desde o início, com a sua intempestiva proposta de dissolução do MFA. Que a ordem política spinolista não seria propriamente generosa em matéria de liberdades é fácil saber pelo que já se conhecia das suas reticências sobre a legalização dos partidos políticos e sobre o direito à greve, por exemplo. Dar a entender que Spínola representava a "democracia ocidental" é, portanto, uma pura mistificação.
Sendo estes factos conhecidos, dizer que "ninguém sabe bem o que pretendia Spínola", como escreve LA, não faz nenhum sentido. Convencido de um grande apoio popular (que não tinha), ele nem sequer fez grande segredo do que queria, nem em Julho de 1974, nem em Setembro do mesmo ano, nem em Março do ano seguinte. A história da radicalização da revolução é a história dos golpes mal-sucedidos de Spínola...

Contradições

O PSD tinha acordado com o PS realizar o referendo sobre o tratado constitucional europeu em simultâneo com as eleições locais, apesar de isso implicar uma prévia revisão da Constituição, que actualmente proíbe tal concomitância. Mas agora defende que o referendo da despenalização do aborto nem sequer deve ter lugar entre as eleições locais e as presidenciais -- o que a Constituição obviamente não proíbe --, por entender que os referendos não devem ocorrer na proximidade de eleições!
Qual é a lógica desta manifesta contradição? É simples: o PSD queria o referendo europeu e não quer o referendo sobre a despenalização do aborto...

O regresso da alQaeda (2)

Tem menos de 2 meses a última ameaça pública da alQaeda a Blair, anunciando um "próximo [evento] enorme e espectacular" (link via J. M. Sardo). Tragicamente "espectacular"!...

O regresso da AlQaeda

Desde o início se sabia que o Reino Unido figurava à cabeça dos alvos da organização terrorista islâmica, por causa do seu papel na guerra do Iraque. O que se não esperava é que fosse possível concretizar um ataque com as dimensões do de hoje em Londres, contornando os serviços de informações e as medidas de segurança que deveriam estar em alerta reforçado, sobretudo depois do atentado de Madrid de há um ano.
Como se já não bastassem os problemas com que se debate -- dificuldades económicas, crise de confiança política --, a Europa tem agora de assumir que a ameaça terrorista é ainda mais grave do que se temia. A pior coisa que se poderia recear era o regresso do terrorismo à agenda política europeia. Infelizmente ele aí está, com as muitas vítimas inocentes que causa e a insegurança que gera.

Cacofonia

A indefinição que ficou no ar nos últimos dois dias sobre a política fiscal nos próximos anos, designadamente sobre uma ulterior subida de impostos, é assaz infeliz. O Primeiro-ministro e o ministro das Finanças só podem ter uma voz nesta matéria.

Não tem sentido...

... a indefinição sobre os futuros aumentos de remuneração dos funcionários públicos, que o Primeiro-ministro anunciou deverem ser "parcimoniosos". Alguém de bom senso pensa que na situação de aperto das finanças públicas há condições para subidas acima da inflação?

Imposto automóvel

A extinção do imposto automóvel (IA), que é pago no acto de compra (por cima do IVA), faz todo o sentido. Permite baixar o preço dos veículos, facilitando a sua aquisição; aproxima os preços no espaço da UE, visto que nos países onde ele não existe eles são muito mais baixos; facilita a transferência de veículos para outros países da UE, em conformidade com o espírito do "mercado único"; e não causa nenhuma perda fiscal, se o valor do IA for repercutido sobre o imposto anual de circulação, como se propõe.
Há só uma dificuldade em Portugal: é que enquanto o IA reverte para o Estado, o imposto de circulação pertence aos municípios, que veriam assim aumentar substancialmente as suas receitas à custa do Estado. A reforma impõe por isso uma revisão da repartição do imposto de circulação, o que não é fácil.

quarta-feira, 6 de julho de 2005

Infidelidade liberal

Entre os tópicos para explicar «por que é que a direita quando chega ao poder não é liberal» (mas qual é a importância da direita liberal em Portugal?) João Miranda menciona o «domínio das ideias de esquerda nas universidades, na cultura e nos media».
Como o "domínio da esquerda" só existe na sua imaginação, será com "balelas" ficcionais como estas que a "direita liberal" pensa encontrar resposta para a sua infidelidade liberal?

Informação isenta...

O tablóide que hoje fez manchete com uma patranha sobre os motoristas de um ministro, vai agora publicar o seu concludente desmentido?
E se o ministro, no exercício do direito de resposta que a lei lhe garante, obrigasse agora a folha a publicar o desmentido com o mesmo destaque na 1ª página?

Nunca é tarde para uma autocrítica honesta

«Direita não estava preparada para governar» (António Pires de Lima, deputado do CDS, referindo-se aos governos PSD-CDS).

Correio dos leitores: Transportes públicos

«Gostaria de acrescentar um ponto [ao post sobre os transportes públicos]: a degradação tarifária não leva só ao acumular de dívida pública que, no actual figurino, onera todos os contribuintes.
Os défices gigantescos que as baixas tarifas geram têm permitido acomodar brutais ineficiências, dispendiosas megalomanias, fantasias político-turísticas e muita irresponsabilidade de gestão, nomeadamente, mas não sobretudo, nas relações sindicais.
Se os custos se reflectissem nas tarifas ou nos orçamentos municipais estou certo que soluções mais eficientes teriam sido alcançadas, com a natural menor satisfação de empreiteios, fornecedores de equipamentos e, mesmo, de toda a espécie de mecenato-dependentes. (...)
Com a excepção da CP (...), as empresas de transportes estiveram à beira do equilíbrio até ao princípio dos anos 80. Depois, a megalomania e impunidade de gestores, o frenesim do Ferreira do Amaral, o dinheiro fácil de Bruxelas e a lassidão do guterrismo tudo conduziu ao que temos.
Não vai ser fácil dar a volta. (...)»

(FMA)

Hipergarantismo

Parece que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) considera ilegítimo o sistema de videovigilância rodoviária que o Governo pretende estabelecer. Mas não se percebe bem que dados pessois dignos de protecção é que estão em causa se uma máquina de vídeo detecta infracções de trânsito, por exemplo, excesso de velocidade ou ultrapassagens irregulares...

Choque

No Brasil o PT fez a sua ascensão política na base da denúncia da corrupção e da defesa da prioridade da ética na política. Lula da Silva firmou uma imagem de honestidade na conduta dos negócios públicos. Por isso a novela da corrupção política que apaixona o Brasil há algumas semanas, envolvendo o PT e o Governo, constitui um enorme choque. Como foi isso possível?
Não existe nenhum dado que implique o Presidente nos esquemas vindos a público, ou sequer no seu conhecimento. Mas a dimensão da história e o facto de ela atingir a cúpula do Governo e do PT desferem um profundo golpe no prestígio do Presidente e nas suas expectativas de releição no ano que vem, que antes destes episódios eram assaz elevadas.

Direito à imaginação

Somos sempre os últimos a saber. O Diário de Notícias cita hoje o meu nome como possível solução para a nova Entidade Reguladora da Saúde. Que importa a falta de fundamento? Viva a imaginação!

Intolerância doutrinária


Os ideólogos liberais conservadores (e os neoliberais e neoconservadores) do mundo anglo-saxónico unem-se no ódio à Revolução Francesa e aos pensadores que consideram seus inspiradores, especialmente Rousseau. Alguns, menos polidos, nem sequer conseguem mencionar o seu nome sem o acompanharem de um desprezível "Sr" (o "Sr Rousseau" dizem eles, para o afastarem do mundo dos pensadores), como faz entre nós J. C. Espada, nas suas aplicadas crónicas jornalísticas.
Há formas menos evidentes de intolerância doutrinária.

O elo fraco

A entrevista à SIC correu bem ao primeiro-ministro. Não fugiu às questões e foi em geral claro e convincente.
Onde ele não consegue convencer, porém, é na questão das SCUT, cuja manutenção voltou a defender, como «instrumento ao serviço do desenvolvimento regional». Na situação financeira do País, em que estão a ser pedidos fortes sacrifícios aos cidadãos, manter auto-estradas em regime de uso gratuito para os utentes (que não são propriamente pessoas de rendimentos baixos), pagas aos concessionários pelo orçamento do Estado, onde representam um pesado encargo, não faz sentido, tanto mais que algumas delas servem regiões das mais desenvolvidas, como o Algarve, ou a faixa litoral a Norte e a Sul do Porto.
De resto, pelo critério enunciado pelo primeiro-ministro, segundo o qual «enquanto as regiões não tiverem um nível de riqueza por cidadão igual à média nacional [as SCUTS] devem manter-se», algumas delas, a começar pelo Algarve, deveriam deixar imediatamente de ser gratuitas.

terça-feira, 5 de julho de 2005

Os favoritos do costume

«Plano tecnológico beneficia empresas de Lisboa e Vale do Tejo» - titula hoje o Diário Económico. Milhões e milhões de euros para um programa de incentivos públicos. Depois admiramo-nos das assimetrias regionais de desenvolvimento no País. O Estado é o principal fautor da desigualdade, favorecendo sistematicamente os investimentos na região de Lisboa, a qual, por ter ultrapassado largamente os 75% do rendimento médio da UE, perdeu direito a fundos europeus. O Estado substitui a UE.

"Petróleo verde"


As imagens dos fogos florestais da televisão mostram o que toda a gente sabe: que os eucaliptais são o principal pasto das chamas e que, com eucaliptos por todo o lado, Portugal está transformado num território perigosamente combustível. Quando há anos alguém utilizou a expressão "petróleo verde" como metáfora para a riqueza da floresta industrial nacional, não imaginava certamente o rigor literal da expressão: a floresta de eucaliptos arde como petróleo. Não é por acaso que «Portugal é o País com mais incêndios florestais nos últimos 25 anos».
Em tempo de projectos de regeneração nacional em tantas áreas, por que não lançar um programa geral de deseucaliptização do País? Não será tempo de deixarmos de nos candidatar a província florestal da Austrália?

Voltar ao princípio

A demissão do presidente da Entidade Reguladora da Saúde, que já tinha perdido um dos dois vogais, culmina uma mal-sucedido processo de instalação da nova entidade, que não chegou verdadeiramente a iniciar funções, desde logo por falta de recursos financeiros e de pessoal.
Aparentemente o Governo nada fez para evitar este desenlace, tendo o ministro Correia de Campos aproveitado para anunciar um "novo formato" para o organismo, já no contexto da lei-quadro das entidades reguladoras independentes que o Governo prepara. No entanto, não está em causa a existência dessa entidade, que, apesar de ter nascido no meio da hostilidade geral dos operadores da saúde, constitui uma peça essencial do novo quadro dos cuidados de saúde (empresarialização, gestão privada de estabelecimentos públicos, parcerias público-privadas, etc.). Curiosamente, alguns dos que mais a contestaram aparecem agora a lamentar a sua paralização...

Privilégios metropolitanos

Na edição de ontem do Diário Económico, a Secretária de Estado dos Transportes dava conta da gravíssima situação do sector público dos transportes públicos de passageiros: endividamento de quase 9 000 milhões de euros (dos quais quase 1/3 para o metropolitano de Lisboa), défices em crescendo, diminuição da procura, degradação das tarifas (que nem sequer têm acompanhado a inflação), aumento de custos, insuficiência das indemnizações compensatórias do serviço público.
Como serviço público essencial que é e pelas suas vantagens ambientais e sociais sobre o transporte individual, os transportes públicos sempre terão de ser financiados em grande parte pelos impostos. Mas não existe nenhuma razão para uma política geral de tarifas degradadas (a subsidiação deve incidir sobre os passes sociais) nem para que os encargos sejam suportados somente pelo Estado, mesmo quando se trata de transportes urbanos ou metropolitanos, ou seja, serviços públicos locais, que deveriam ser suportados pelos respectivos municípios beneficiários, como sucede no resto do País.
Ora, tirando a Refer e a CP, todas as demais empresas (Metro de Lisboa, Carris, Transtejo, STCP) operam em Lisboa e no Porto. Mesmo que o Estado deva assegurar as infra-estruturas (por exemplo, as redes de metro), estar o orçamento do Estado a suportar a exploração de transportes locais é ilógico e injusto, tanto mais que se trata das cidades mais ricas do País. Os municípios de Lisboa e o Porto não têm que ter tal privilégio.

Blogues

1. O Abnóxio faz um ano, em boa forma. Só se surpreende quem não conhece o autor. Parabéns, Ademar.
2. E um antigo bloguista volta às lides. Boas-vindas a A Destreza das Dúvidas.

Citação

«Ao não retirar a confiança política a Alberto João Jardim, como fez com Valentim Loureiro, Marques Mendes coloca em causa a sua credibilidade.»
(Raul Vaz, Diário de Notícias de hoje)

Teocracia pelo voto

A rotunda vitória do candidato mais radical nas eleições presidenciais no Irão mostra que em sociedades fundamentalistas o povo elege convictamente dirigentes fundamentalistas. Os aprendizes das cruzadas democráticas insistem em não se dar conta de que, sem profundas mudanças sociais e culturais, em certos países destituídos de "civic culture" a alternativa ao autoritarismo secular e modernizador pode ser uma retrógrada teocracia electiva.

Os ultras ao assalto do supremo poder

A demissão da juíza Sandra Day O'Connor (na fila da frente na imagem junta) do Supremo Tribunal dos Estados Unidos -- uma juíza republicana conservadora relativamente moderada, que funcionou várias vezes como voto decisivo em votações 5-4, desempatando entre os juízes relativamente "liberais" (ou seja, progressistas) e os conservadores mais radicais -- desencadeou a guerra pelo Supremo Tribunal que era tão esperada quanto temida.
Sendo os juízes designados pelo Presidente, embora com necessidade de confirmação do Senado, onde ele tem maioria, Bush vai ter uma oportunidade de ouro para colocar no Tribunal alguém que lhe dê uma maioria fielmente conservadora, completando a trilogia do poder republicano: presidente, maioria no congresso e no Supremo Tribunal, numa concentração de poder pouco comum na história dos Estados Unidos.
Dado o enorme poder do Supremo -- ao qual, face à omissão ou indeterminação da Constituição, tem cabido tomar as decisões politicas fundamentais (dessegração racial, aborto, "acção positiva" em favor dos negros, etc.) --, o que está em causa é muito. Os sectores mais ultras da constelação republicana já estão em campo para forçar a escolha de um dos seus, que garanta votar contra a descriminalização do aborto, a separação da Igreja e do Estado, a "acção positiva", os casamentos gay e a eutanásia, os direitos dos consumidores, as garantias ambientais, as limitações à propriedade, etc.). Para ver o fanatismo dessas facções extremistas, um dos seus alvos é mesmo o actual ministro da Justiça de Bush, Alberto Gonzalez, tido como pouco fiável, por não ser contrário à despenalização do aborto.
Em resultado da natureza vitalícia das nomeações judiciais, a mudança de composição do Supremo Tribunal pode marcar o destino político dos Estados Unidos para a próxima geração. Depois de ter dado a presidência a Bush em 2001, o Supremo pode dar-lhe o domínio político da ideologia republicana mais reaccionária nas próximas décadas, para além da sua remoção da Casa Branca e do Congresso. É nada menos do que isso que se joga nos próximos tempos em Washington.

segunda-feira, 4 de julho de 2005

Fazer história

Vai ser finalmente abolida em França a distinção entre "filhos legítimos" e "filhos naturais", que se mantinha no Código Civil há mais de 200 anos, apesar de as discriminações se terem entretanto reduzido. É o fim de uma era na concepção matrimonial da família, quando em muitos países o número de filhos nascidos fora do casamento se aproxima os 50% ou é mesmo superior.
E pensar que em Portugal o fim da discriminação entre filhos legítimos e filhos ilegítimos, que o Código Civil de 1966 mantivera, bem como a respectiva discriminação de direitos, foram abolidas directamente pela própria Constituição de 1976, abrindo uma senda que só seria seguida muito mais tarde por outros países europeus, como a Bélgica em 1987, a Alemanha em 1997, e agora a França. É por essas e por outras que a CRP fez história!...

Ortodoxia

Escreve Mário Pinto hoje no Público a (des)propósito do reconhecimento do casamento homossexual em Espanha: «Casamento e família são uma só coisa. E não há família sem geração».
Nenhuma destas equações é válida. Por um lado, há casamentos que não chegam a gerar laços familiares; e há muitas famílias sem casamento, baseadas em uniões não matrimonializadas (a própria Constituição distingue as duas noções). Por outro lado, há famílias sem filhos, como sempre houve e hoje é mais frequente; e há, obviamente, filiação fora da família (embora menos do que antes, justamente porque hoje a família não se reduz ao casamento) e, cada vez mais, filiação fora do casamento.
Por que é que a ortodoxia católica insiste em ignorar o mundo?

"Férias a meio milhão"

Evidentemente é excessivo e desproporcionado o regime de dispensa de trabalho aos candidatos a eleições, para mais tratando-se de eleições locais, com milhares e milhares de candidatos, cuja ausência durante um mês -- a campanha eleitoral tem 11 dias!... -- pode lesar seriamente as empresas e os serviços públicos, que ainda por cima têm de asseguar as correspondentes remunerações.
Num momento de austeridade financeira e de moralização da vida pública, seria altamente conveniente rever um tal regime ainda a tempo das próximas eleições. Entre outras vantagens haveria a de dispensar a candidatura de listas que só existem para proporcionar férias aos respectivos candidatos...