quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

O 'eixo do mal' já não é o que era... I





Parabéns à Administração Bush!
O acordo entre os EUA, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, a China e a Rússia e o Japão para o desarmamento nuclear da Coreia do Norte e a eventual normalização das relações entre os vizinhos coreanos por um lado e entre a Coreia do Norte e os EUA por outro (terminando, se tudo correr bem, mais de 50 anos de estado de guerra na península coreana), representa uma coisa rara: um sucesso diplomático da Administração Bush, conquistado à custa de muita paciência, pragmatismo e cedências de parte a parte.
Pudera. Se eu fosse Presidente dos EUA e estivesse no fim do meu segundo mandato e olhasse à volta e visse que estava prestes a deixar o Irão, o Iraque, o Afeganistão e a Coreia do Norte numa situação bem pior do que quando cheguei, eu cá também dava uma volta de 180 graus. Bem-vindo à sanidade, presidente. Já viu que até se pode assinar acordos com membros do eixo do mal?
Como dizia Gary Samore, um dos principais responsáveis pelas questões de não-proliferação na Administração Clinton, "infelizmente [o acordo] vem três anos, oito bombas nucleares e um teste nuclear atrasado. Mas mais vale tarde do que nunca."
Até agora, esta Administração defendia com unhas e dentes a tese descabelada de que só o desarmamento e a desnuclearização completa da Coreia do Norte podiam levar a um acordo. Esta posição mascarava o apetite por regime change que cegava Washington e que era a verdadeira razão por detrás da falta de apetite para negociações.
...

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

A República moderna

O lançamento do novo cartão de cidadão na cidade da Horta (Ilha do Faial, Açores) representa simbolicamente três sucessos: um êxito tecnológico, uma prova de modernização administrativa e um testemunho do desenvolvimento das regiões mais periféricas do País.
A primeira cidadã portuguesa a ter o novo cartão é aluna da Escola Manuel de Arriaga, no Faial. Curiosamente, dizem-me dos Açores, o primeiro cartão oficial de identidade nacional também foi atribuído, há quase um século (1914), a outro faialense, o primeiro presidente constitucional da então jovem República, justamente Manuel de Arriaga.
Não pude confirmar esta informação. Mas se não é verdade, bem poderia ser. A História tem destas coincidências felizes...

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Clandestino é que era bom...

O Correio da Manhã noticiava hoje uma "corrida ao negócio do aborto" e não faltará entre os opositores da despenalização quem grite "vêem como tínhamos razão!".
Não têm nenhuma razão, como é bom de ver. O tal "negócio do aborto" já existia, só que ilegal, entre nós, ou legal, em Espanha. Com a legalização da IVG até às 10 semanas, essa actividade médica deixa de ser clandestina entre nós, as portuguesas deixam de ter de ir a Espanha (as que podiam) e poderão escolher realizar a IVG nas clínicas privadas autorizadas ou no SNS, de acordo com as suas preferências (e posses), toda a actividade ficará sujeita à regulação e supervisão das autoridades sanitárias nacionais e a "economia paralela" perderá um dos seus santuários. E, sobretudo, milhares de mulheres portuguesas deixarão de sofrer os riscos e as sequelas dos abortos clandestinos.
Foi justamente para isso que os portugueses quiseram a despenalização e legalização da IVG, nos limites e condições do referendo.

IVG e Código deontológico dos médicos

Como defendo hoje no meu artigo do Público, e já tinha explicado num artigo anterior, é insustentável a manutenção da actual redacção do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, que considera "infracção deontológica grave" todos os casos de aborto. Essa norma já era indefensável desde 1984, quando algumas situações de interrupção da gravidez deixaram de ser ilícitas; tornou-se ainda mais indefensável com a iminente descriminalização da interrupção da gravidez por vontade da mulher até às 10 semanas, no seguimento do referendo do passado domingo.
Por isso é de saudar a iniciativa do Prof. Rui Nunes, do Serviços de Ética Médica da Faculdade de Medicina do Porto, o qual, ainda antes do referendo, propôs a modificação do referido Código Deontológico, excluindo as situações legalmente lícitas de interrupção da gravidez.
De facto, sendo a referida norma ilegal, só há três soluções: ou é revogada pela própria Ordem, ou é declarada nula pelos tribunais, ou é revogada pela própria AR, ao votar a nova lei de despenalização do aborto. Era bem preferível a primeira solução...

Nem tudo me agrada no novo Público

Sem dúvida, o "visual" do novo Público torna o jornal mais atraente e "chamativo". Mas, mesmo reportando-me somente ao novo grafismo, sem entrar nas mudanças respeitantes ao conteúdo, há vários aspectos de que não gosto, nomeadamente: a substituição do título do jornal por uma isolada e rutilante letra P, o excesso do "full colour", o desterro das páginas de opinião para o final do jornal, as "chamadas" no cabeçalho das páginas para temas de secção diferente, o sacrifício da densidade de conteúdos em favor das imagens e dos espaços em branco.

Aditamento:
Entre as mudanças de conteúdos, há uma que muito lamento: a ausência de Mário Mesquita, um dos meus colunistas preferidos, cuja saída me parece mal justificada.

O Código de Direito Canónico deixou de ser lei constitucional entre nós.

«Desde a implantação da República que a Igreja Católica não sofria uma derrota política tão profunda, e desta vez directamente às mãos do voto popular. Decididamente, ela deixou de comandar a consciência moral dos portugueses e as opções políticas do Estado. A separação entre o Estado e a religião deu um decisivo passo em frente. O Código de Direito Canónico deixou de ser lei constitucional entre nós.»
[Do meu artigo de hoje no Público; link só para assinantes.]

"Uma nova era em Portugal"

A opinião do El País sobre o referendo em Portugal.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

O "pacto presidencial" de Ségoléne Royal

O programa de candidatura presidencial de Ségolène Royal inclui nada menos de 100 medidas, em todos as áreas políticas, não se distinguindo em nada de um programa de governo. Decididamente a França assume-se como uma república presidencialista, em que as eleições presidenciais decidem as políticas governativas.
Como era de esperar, o programa da candidata socialista contém uma forte carga social, que muitas vezes inclui objectivos quantificados. Para além do intervencionismo governamental que pressupõe, a questão do financiamento daquelas medidas deve constituir um dos testes políticos principais do programa.

Almanaque Republicano

A três anos do centenário da instauração da República, vale a pena acompanhar o Almanaque Republicano.

Antologia do dislate

O indescritível Luís Delgado no seu melhor nonsense.
Aditamento: Afinal sempre há pior!

Imaginação fértil

As coisas que a gente pode descobrir a nosso respeito ao abrir um jornal: pág. 23 do Público de hoje.

O "novo" Público...

...aqui.

Geografia do referendo

Foi no Sul que a vitória do "sim" teve mais expressão, como era esperado. Mas foi no Centro e no Norte e nas ilhas que o "sim" subiu mais em relação a 1998, em alguns casos com diferenças superiores a 15 pontos percentuais. O triunfo nacional da despenalização também passou por aí, incluindo nos terrenos onde o "não" ganhou. (Quanto ao distrito de Coimbra, apesar da sua geografia mista -- litoral e interior --, não deixou os seus créditos políticos por mãos alheias, tendo o sim ficado bem acima da média nacional, com 63%.)

"Aborto livre"

Os derrotados do "não" estão agora muito preocupados com a regulamentação da interrupção da gravidez, insistindo na necessidade de um mecanismo obrigatório de reflexão das mulheres decididas a abortar (medida que, aliás, os defensores da despenalização anunciaram há muito...).
Mas não eram eles que asseveravam que a pergunta do referendo garantia o "aborto livre" e o "aborto a pedido"?! Afinal, agora que o "sim" venceu, já não era isso que estava no referendo?

E a grande derrotada é ...

... a Igreja Católica. Não somente pelo protagonismo de bispos e sacerdotes, mas também do domínio de personalidades alinhadas com ela nos partidos e movimentos do "não" e, sobretudo, pela omnipresença das suas numerosas organizações subsidiárias na campanha (associação dos médicos católicos, opus dei, etc.).
Nisso também o resultado do referendo constitui um feito histórico: desde a implantação da República que a Igreja Católica não sofria uma derrota política tão profunda. E desta vez directamente às mãos do voto popular.
Decididamente, a Igreja deixou de comandar a consciência moral dos portugueses e as opções políticas do Estado. A separação do Estado e das igrejas deu um decisivo passo em frente.

E o grande vencedor é...

...José Sócrates. Não apenas pelo seu empenhamento na vitória do sim e na mobilização do PS para a campanha (que diferença em relação a 1998!). Mas também pelo triunfo da sua estratégia de apostar no referendo e de comprometer-se em respeitar o seu resultado, rejeitando sempre a ideia de votar a lei sem consulta popular (como insistia o PCP), e correndo o respectivo risco.
A despenalização por via parlamentar era obviamente inatacável em termos de legitimidade constitucional. Mas a aprovação referendária confere-lhe uma legitimidade política super-reforçada.
[revisto]

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Laicidade...

...é quando o Código Penal deixa de imitar o Código de Direito Canónico.

Comparações

É certo que ficámos bem atrás da Suíça, onde a despenalização ganhou com 72% num referendo idêntico, há alguns anos trás.
Mas ninguém poderá negar que é uma vitória impressionante.

Para a história da liberdade em Portugal

A expressão do triunfo da despenalização do aborto (quase 60% contra pouco mais de 40%) ultrapassou as expectativas mais optimistas.
Uma vitória histórica!

SIM! Finalmente!

Quem ganhou? As portuguesas. Os portugueses. O Portugal europeu, moderno, consciente, com futuro. O PS. Os movimentos cívicos e partidos que se bateram inteligentemente pelo SIM.
Quem foi decisivo na campanha? O Gato Fedorento (obrigada, meus! incluindo o Prof. Marcelo) e José Sócrates.
O que importa a AR fazer rapidamente? Regulamentar a lei, designadamente quanto a período de reflexão e a objectores de consciência.
Onde importa que o Governo invista seriamente? Na educação sexual nas escolas e no planeamento familiar.

Quem ganha, se o sim vencer?

Ganha a despenalização limitada e moderada da interrupção voluntária da gravidez; o direito das mulheres a uma maternidade consciente e responsável; o PS (com José Sócrates em destaque) e demais forças políticas de esquerda, bem como a ala liberal do PSD; os médicos e os católicos "pela escolha"; o Portugal laico, moderno e liberal.
Também serão eles os principais derrotados, se o não vencer...

Quem ganha, se o não vencer?

Ganha o "status quo" penal do aborto e o aborto clandestino; o "direito à vida do feto"; a Igreja Católica, a Associação dos Médicos Católicos; o CDS-PP e a demais direita política; o PSD conservador (com Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa em destaque); o Portugal católico, tradicional e iliberal.
Também serão eles os principais derrotados, se o sim vencer...

Um teste civilizacional

Como expus num artigo publicado ontem no El País, o referendo à despenalização do aborto também era um "teste civilizacional" (versão original portuguesa na Aba da Causa).

Um pouco mais de rigor, pf.

Ao contrário do que já ouvi hoje algumas vezes, o facto de a votação no referendo ficar abaixo dos 50% -- o que neste momento parece seguro -- não afecta a "validade" do referendo, mas sim somente a sua eficácia vinculativa.
Qualquer que seja o seu resultado, o Primeiro-Ministro já anunciou que respeitará a vontade dos cidadãos: o aborto voluntário até às 10 semanas deixará de ser crime, se o "sim" vencer; e continuará como crime, como hoje, se o "não" vencer. Não de pode ser mais claro, nem mais transparente.

Não há maneira de aprenderem

Esta manhã, em muitas ruas de Coimbra apareceram colados nos postes e paredes pequenos cartazes a apelar ao não (com a inevitável imagem de uma criança). Decididamente, há gente que não consegue conformar-se com as regras democráticas...

Sondagens

Para analisar as previsões.

sábado, 10 de fevereiro de 2007

O Diplomata

Ou me engano muito, ou esta escrita de O Diplomata não é desconhecida na blogosfera...

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Desvergonha

A ideia de que votando contra a despenalização se pode contribuir para a despenalização é seguramente uma das mais pedestres mistificações políticas de que há memória no Portugal democrático.

Na dúvida, vote Sim

Se tiver dúvidas sobre como votar no próximo referendo, vote sim, pela despenalização.
Ao votar sim não está a contribuir para ao aumento do número de abortos. Pelo contrário, poderá contribuir para a sua diminuição. Em países onde o aborto foi despenalizado - e isso já aconteceu na maioria dos países da União Europeia - verifica-se que o número de abortos tem vindo progressivamente a decrescer e que uma mulher aconselhada sobre os métodos de planeamento familiar, após ter feito um aborto num estabelecimento de saúde, raramente volta a recorrer a esse processo de interrupção da gravidez. Pelo contrário, há estimativas de que isso acontece no caso dos abortos clandestinos, a que mulheres recorrem uma, duas e mais vezes.
Mesmo para aqueles, médicos ou não, que se julgam capazes de convencer uma mulher que pretende abortar a não o fazer, é mais fácil poderem atingir esse objectivo, no cumprimento das suas convicções, se essa mulher se dirigir a um hospital e não a um qualquer local clandestino, onde à porta não me consta que se encontrem os militantes do não.
Ao votar sim, mesmo com dúvidas, apenas vota pela despenalização de uma prática social que muito pouca gente considera como um crime.
Ao votar sim, mesmo com dúvidas, não fecha os olhos a uma realidade que está aí, goste ou não dela, que é a de milhares de abortos clandestinos por ano, praticados por mulheres de todas as condições sociais e convicções religiosas.
Ao votar sim, mesmo com dúvidas, mostra a sua solidariedade para com muitas famílias de menores recursos, onde as mulheres praticam o aborto em condições de grande risco, pondo em causa a sua saúde ou mesmo a sua vida.
Ao votar sim, apenas afirma sua tolerância para com a diferença. O voto sim pela despenalização não exclui o não ao aborto, enquanto o voto contra mantém o aborto clandestino. Na dúvida, vote sim.

PS - Este texto foi publicado em 1998, no Diário de Coimbra. O que se passou desde então reforçou a minha convicção nos argumentos nele defendidos. Tomara que não tivesse sido assim!

Maria Manuel Leitão Marques

Homenagem aos meus professores de Direito

Àqueles que me ensinaram o que era um crime e o que não era. Que há comportamentos que outrora foram qualificados como crime (o adultério, a prostituição, a homossexualidade) e que saíram do Código Penal quando a sua incriminação deixou de fazer sentido. Que me fizeram acreditar que o Direito Penal é para ser levado a sério e não para ser instrumentalizado ao serviço de dogmas morais ou das conveniências políticas ou sociais!
Maria Manuel Leitão Marques