sábado, 17 de janeiro de 2004

A intratável questão do aborto

1. Contradição nos termos
Definitivamente a Direita não consegue lidar com a questão penal do aborto, acabando quase sempre por meter os pés pelas mãos. Mesmo a que se tem por mais pura e coerente incorre nas mais inesperadas contradições. Na sua nova coluna no "Expresso" (link indisponível) J. Pereira Coutinho insiste em defender o indefensável. Ele opõe-se à descriminalização mas não quer a condenação das mulheres que o fazem. Não se dá porém ao trabalho de mostrar como se podem ter as duas coisas simultaneamente. Ordenando ao Ministério Público para fechar sempre os olhos? Pedindo aos juízes para ignorarem o Código Penal? Mas se, afinal, os abortos não devem ser punidos, qual então a justificação (e eficácia) da criminalização?
Por isso, querer a criminalização sem punição ou não querer a punição mantendo a criminalização só pode relevar de uma «suprema hipocrisia» (para utilizar palavras de JPC) ou de um extremo cinismo.

2. Argumento ao contrário
O mesmo "Expresso" conta que o Primeiro-Ministro admite descriminalizar o aborto, mas somente a prazo (sempre depois de 2006), preferindo numa primeira fase privilegiar medidas preventivas, combatendo as causas que levam as mulheres a abortar (planeamento familiar, educação sexual, apoio à maternidade, etc.).
Ora, isto significa colocar as coisas de pernas para o ar. Se em Portugal se justifica especialmente a despenalização da IVG é justamente porque são intensas e generalizadas as tais causas de gravidez indesejada, as quais, de resto, demoram muito tempo e exigem muitos esforços para serem atenuadas, quanto mais eliminadas.
A luta contra as causas dos abortos e a sua despenalização só podem ir juntos. Para penalização já basta ter de fazê-los.

3. Sem margem para liberdade de voto
Contrariando essa aparente relativização da criminalização do aborto (já que se admite a despenalização no futuro), a verdade é que o PSD decretou a disciplina de voto parlamentar nesta matéria, contrariando a tradição que assegurava liberdade de voto aos deputados discordantes (tal como de resto o PS reconhece idêntica liberdade aos seus deputados contrários à despenalização). A disciplina de voto em questões de consciência típicas como esta - que constitui uma limitação grave da liberdade do exercício do mandato, constitucionalmente garantida - só se compreende se para o PSD a questão for de fundamental importância ideológica ou política, o que não deixa de ser uma novidade. O invocado compromisso eleitoral não chega como explicação, pois esse vincula a posição oficial do partido, não podendo justificar só por si a proibição de divergências de deputados individuais, que nem sequer poriam em causa o resultado da votação parlamentar. É evidente que aqui prevaleceu a posição do parceiro de coligação, o PP, esse, sim, fundamentalista na posição criminalizadora.
Dá para perguntar: que atitude adoptariam os deputados J. Pacheco Pereira e Rui Rio, por exemplo, se estivessem na Assembleia da República?

Vital Moreira