1. Uma carta de França
A propósito do meu artigo de 3ª feira no "Público" sobre a proibição de vestes e símbolos religiosos nas escolas francesas recebi um comentário de um estudante brasileiro em França, que vale a pena registar.
«Gostaria de parabenizá-lo pelo lúcido artigo sobre a proibição do uso dos símbolos religiosos nas escolas públicas francesas, com o qual tenho total identidade. (...) Tenho conversado bastante sobre o assunto por aqui [Estrasburgo], embora em círculos restritos, defendendo a mesma visão esposada em seu artigo. Mesmo entre pessoas que julgo mais lúcidas, tenho ficado, na maioria das vezes, isolado, apesar de na Alsácia não prevalecer o Estado laico e de a lei provavelmente não vir a ser aplicada por aqui. (...)
Quanto a mim, confesso que há uma questão, subjacente a este debate, que permanece como angustiosa dúvida em minha mente: a justa equação entre a universalidade e a relatividade dos direitos humanos, neste caso em relação à obrigatoriedade do uso da indumentária como instrumento de opressão sobre as mulheres muçulmanas. De maneira lateral, mas nem sempre secundária, esta questão tem vindo à baila nas discussões, embora às vezes com o intuito de turvar ainda mais os motivos reais da decisão que acabou por ser adotada.
Um abraço,
Eduardo Campos»
[Sublinhado meu, VM]
2. Inesperado apoio à proibição
Foi o que recebeu Jacques Chirac, vindo dos Estados Unidos no prestigiado "Christian Science Monitor", pela pena de Cheryl Benard, justamente com o argumento "feminista" de que, sendo o veu islâmico uma forma de opressão das mulheres, a sua proibição pode constituir uma libertação das mesmas.
3. Um argumento inconcludente
Mas o argumento "feminista" - que também serviu em França para apoiar a proibição como elemento de reforço do argumento laico - revela-se assaz claudicante.
Primeiro, o uso do véu não é uma obrigação universal, não sendo usado por muitas mulheres, sobretudo nos meios urbanos. Segundo, não é sustentável a tese de que as mulheres o usam forçadamente na maior parte dos casos (no caso francês a polémica resultou de duas jovens que lutaram pelo seu uso na escola), sendo perigoso defender que elas devem ser obrigadas a libertarem-se daquilo que elas não sentem como opressão, mas sim como expressão religiosa pessoal. Terceiro, se a principal razão para proibir o véu nas escolas públicas fosse o libertação da opressão feminina que ele significa na cultura islâmica, então a solução não deveria ser proibi-lo somente na escola, mas sim em todos os espaços públicos. Quarto, com essa justificação para a interdição do véu perde todo o sentido proibir os símbolos religiosos das demais igrejas, contra os quais não vale o argumento feminista. Quinto, a liberdade individual, ainda por cima em matéria religiosa, só deve ser restringida quando o seu exercício possa lesar outrem ou interesses públicos suficientemente fortes para prevelecerem sobre ela. Ora, fora os casos de proselitismo agressivo ou hipóteses afins, não se vê que tais requisitos se verifiquem no caso do uso do véu islâmico.
Vital Moreira