Não tenho religião, mas respeito quem tem, invoque Deus, Alá, Buda, o Messias, ou o sol. Fiz tardiamente a primeira-comunhão, permissão arrancada a ferros de mãe tão catolicamente educada que virara anti-clerical; mas aos 11 anos, a morte de um irmão-bébé arredou-me fulminantemente do círculo dos crentes. Escusado será dizer que não cultivei respeito por instituições religiosas, tanto mais que nos anos 60 se confundiam com o poder político que oprimia o país, abençoando-lhe a guerra colonial. Pertenço até àquela minoria (dezenas?) de alunas/os do liceu que no princípio de cada ano escolar, por requerimento do pai ou mãe ao Ministro da Educação, pedia dispensa das aulas de «Religião e Moral», a pretexto de não professar a religião católica. Era acto de resistência política, da resistência ostensiva possível, para compensar a obrigação de vestir a farda verde da Mocidade Portuguesa. E assim era entendido pelo poder salazarento: os requerimentos demoravam meses a ser deferidos, só no segundo período é que chegava a resposta, até lá no «Maria Amália» toda a turma tinha de gramar as diatriabes da mulher hirta, seca e engelhada (irmã de um inspector da PIDE, corria) contra as «depravações comunistas», com olhos e dedos apontados às requerentes da dispensa.
Libertei-me da religião sem ressentimentos. Ficou-me a Moral (a minha, inevitavelmente influenciada pela outra, dos outros). Mas a vida encarregou-se de me fazer cruzar com meia dúzia de homens e mulheres de excepção que me levaram a apreciar as igrejas que os tinham por servidores, incluindo os Bahai e os Quakers.
Na Igreja Católica, não contorno João Paulo II. «O Papa é revisa» brincávamos há vinte e tal anos por ele vir do Leste - e ele ajudou a derrubar o muro. E hoje, apesar da voz debilitada, continua a falar tonitruantemente contra outros vergonhosos muros, desde o que aprisiona Israel no betão erguido em terra palestina, aos que procuram agrilhoar a Humanidade a conflitos civilizacionais para justificar insanas guerras. Desculpo-lhe a misogenia, deformação «profissional» do cargo milenar, até porque a evolução social e as necessidades da própria Igreja a vão corrigindo aceleradamente (também assim interpreto as palavras do Bispo do Porto sobre o aborto).
Timor teve papel a mostrar-me a Santa Madre Igreja - admirei mas também abominei a finura realista, sem princípios, de um Monsenhor Tauran (o Kissinger do Vaticano), louvei a viragem determinada pelo Cardeal Echegaray e emudeci diante da intrepidez de centenas de padres e freiras que, atrás do Bispo Belo, resistiam como guerrilheiros. Em Jacarta, em 1999 e 2000, como acorrer a tantos pedidos angustiantes, se não houvesse em Lisboa a providência desburocratizada de um incansável Padre Melícias? Já publicamente me confessei devota de D. Basílio do Nascimento, Bispo de Baucau - em impossíveis circunstâncias observei-lhe a lucidez e tenacidade política, a capacidade operacional, o conhecimento do povo e dos seus inimigos (incluindo internos e intrínsecos), a tolerância e a afabilidade desarmante: no Padre vi o Príncipe.
Vem isto a propósito de vozes da Igreja Católica, em português, que cada dia mais respeito por as sentir corajosas intérpretes de preocupações progressistas e de valores morais em que me revejo. Tive ontem a sorte de, inopinadamente, sintonizar a Rádio Renascença, falava D. Januário Torgal Ferreira. Não ouvi tudo, mas ainda o apanhei a discorrer sobre a Casa Pia e a relação entre justiça e media, sobre o recente diploma legal regulamentador da imigração e sobre o aborto (neste tema compreensivelmente mais constrangido).
Demoliu, com a autoridade de quem está no terreno e conhece a realidade, a nova regulamentação sobre imigração e a quota logo ridicularizada por patrões, sindicatos e associações de imigrantes. Denunciou os ziguezagues do PSD e a sujeição do seu governo à agenda xenófoba e populista do CDS/PP, imoral e indigna de um Portugal que exportou e exporta portugueses por esse mundo fora à procura de melhor vida, como os imigrantes que nos buscam, vindos de Africa, Brasil ou de Leste. Denunciou a sanha anti-PS que o Governo matraqueia para encobrir a paralisia política, a incapacidade de reformar serviços, a incompetência no combate às entradas clandestinas e a conivência com as redes de traficância, de corrupção, de prostituição que se sustentam com a exploração de imigrantes ilegais que o novo diploma condena a permanecer na ilegalidade. Acusou a memória curta das indignidades sofridas por gerações de emigrantes portugueses por parte de quem agora reclama contra o emprego de estrangeiros mas rejeita trabalhos e salários que eles aceitam. Insurgiu-se contra os políticos que abdicam de explicar aos portugueses como a nossa sociedade precisa e como beneficia com a presença dos imigrantes. Insurgiu-se contra discriminações que a nova lei escandalosamente perpetua.
Obrigada D. Januário. Pelo desassombramento a criticar quem tem de ser criticado, a frontalidade a expor pechas e contradições portuguesas, mas também a apontar caminhos, a fazer pedagogia e a instilar determinação para não baixarmos os braços e reerguermos o país do lodaçal onde esta maioria política, sem moral nem moralidade, o está a enterrar.
Ana Gomes