Fez-me bem ouvir D. Januário Torgal Ferreira também para compensar a leitura da imprensa do fim-de-semana, recheada de notícias acabrunhantes sobre o desinvestimento na economia portuguesa, empresários que assinam manifestos patrioteiros e correm a vender-se a quem der mais, empresas a fechar e desemprego a aumentar, falências fraudulentas, corrupção e evasão fiscal galopantes; funcionários públicos encostados à parede, incompetência e embuste de governantes que mais parecem à compita para abocanhar lugares na administração da banca espanhola; brandos costumes que escamoteiam perversões pedófilas nas famílias, Casa Pia onde não se fala em meninas abusadas, casas nada pias à vista desarmada pelos lares de menores por todo o país (atente-se na importante reportagem «O melhor do mundo são as crianças» na «Grande Reportagem»); justiça pelas ruas da amargura (Fátima Felgueiras fugiu e não devia, mas a carta que escreveu ao PR suscita reflexão, sabendo nós hoje o que sabemos sobre como funcionam polícias, juízes e procuradores, avessos a investigar e incomodar Silvas leitoeiros, Isaltinos repuxantes e aperucadas «Catherines»); media desbundados na concorrência pelas audiências e controlados por nebulosos grupos económicos (sabe-se quem são os colombianos que financiam a TVI?), a pedir auto-regulação e responsabilizações individualizadas em justiça, não restrições genéricas à liberdade de imprensa que velhos censores logo ameaçam, cavalgando críticas tão compreensíveis como desviadas do alvo principal; crise generalizada de valores e de confiança a fazer disparar o consumo de anti-depressivos.
Tudo condensado em páginas apocalípticas do Expresso, que crises agudas de andropausa (Nicolau Santos ressalvado, ele também acha que «há esperança para o país») predispõem a afinar pelo diapasão desiludido do industrial José Manuel de Mello, propondo a rendição do país a Castela.
Neste panorama, lava a alma ouvir alguém com a autoridade e o peso da Igreja e a humanidade e experiência de D. Januário a vincar que ser português é ter orgulho próprio e na nossa terra, perseverar em condições duríssimas quando ela é madrasta, recompor-se e saber ser solidário, mesmo se pouco há a partilhar.
Vivendo-se fora descobre-se mais o que é ser português. É ultrapassar a saudade, gostar de fado mas não lhe sucumbir. É ser diferente e ser confiante. É ser desorganizado mas aprender a organizar-se - é para isso que serve a União Europeia e temos aprendido alguma coisa. É saber adaptar-se, apreciar a paisagem e desbravar outras empresas e tecnologias quando, finalmente, não houver mais estádios ou auto-estradas para construir. Ser português é ter sangue judeu, árabe, africano, indiano, celta, godo, romano, fenício, cigano e outro, todos misturados a pulsar nas veias. Ser português é, por isso, ter a curiosidade e a capacidade de entender os outros.
Ser português é não ser espanhol, gostando de Espanha, das Espanhas, mas ali ao lado. Ser português é conviver e comerciar com «nuestros hermanos» e aliar-se a Madrid em Bruxelas, ou à Galiza, à Catalunha, à Extremadura sempre que der jeito. É furar, chatear e protestar (como fez o Presidente Sampaio em visita em Madrid) contra entraves administrativos que impedem empresas portuguesas de ganhar contratos Espanha. É não borregar, é não enfileirar atrás do Sr. Aznar a asnear, como é tropismo do Dr. Durão Barroso (a Carta dos Oito, o Iraque, o TGV...). É investir nas empresas em Portugal e na educação e qualificação dos portugueses. É pagar a investigação científica em laboratórios e universidades cá, estimular que se liguem a empresas e acarinhar os cientistas portugueses, não deixando fugir os jovens para outras paragens. É também oscilar entre o optimismo tolo, parolo e desbragado (senti-o, de fora, durante o tempo das vacas gordas da governação PS) e o ainda mais tolo, parolo e doentio derrotismo (vivemo-lo com a «tanga» que o Dr. Barroso começou a arengar ainda em campanha eleitoral). Atenção: ser português também é defenestrar Miguéis de Vasconcelos. Ser português é, enfim, restaurar valores, fabricar novos, recuperar gerações e vencer sucessivas crises de confiança e de identidade.
Numa inspirada crónica na XIS.Público de sábado, Faiza Hayat, uma portuguesa de raízes islâmicas que maneja admiravelmente a lingua-mátria e exala fina sensibilidade pátria (o que ganhamos com a imigração!), reflecte sobre «o pessimismo que se afirma entre nós como uma espécie de religião oficial». Nota a tristeza com que vestimos, a desconfiança perante gente alegre, políticos jovens esforçando-se por parecer agentes funerários, tudo apesar do nosso glorioso sol que deita turistas na relva em Janeiro. E desafia os escritores que suicidam personagens e acumulam mortos em guerras passadas ou inventadas, a escrever antes sobre o sol. Ao sol.
Ser português é isso: ao sol do nosso sol, recuperar energias e curarmo-nos do mal. Portugal não se cumpre. Reinventa-se.
Ana Gomes