domingo, 11 de setembro de 2005

As pombinhas do Katrina

11 de Setembro. Passaram quatro anos da noite, em Jacarta, em que emudeci de horror, indignação, fúria, desespero, diante de um televisor, vendo gente atirar-se das torres do WTC, que eu tratara por tu das minhas janelas em Nova Iorque, e assistindo em directo ao desmoronamento das torres. Rebentaram depois mais guerras insanas, mais prédios, comboios e autocarros cheios de cidadãos inocentes, espalharam-se ódios e, como não podia deixar de ser, proliferaram terroristas. Nasceram netos, também, para vincar mais a preocupação pelo mundo que lhes deixamos e a responsabilidade de tudo tentar para travar a loucura de quem desgoverna, governando, de quem empurra para o abismo, supostamente liderando.
Hoje, 11 de Setembro de 2005, é «Ground Zero» em New Orleans, na Louisiana afogada em água podre, viscosa, envenenada. Para além da destruição e do sofrimento, tal como o 11 de Setembro de 2001, também o furacão Katrina não pode deixar de ter consequências profundas para a América e para o Mundo.
Emmanuel Todd em 2000 já antecipava no «Après l'Empire» o «imperial overstreching» dos EUA. Mas o Katrina é que veio realmente mostrar a verdadeira face da América governada pelos «falcões» neo-conservadores e mudar o modo como o resto do mundo olha para a única, mas subitamente vulnerável hiperpotência, com uma Administração alheada dos interesses dos seus cidadãos e flagrantemente incompetente.
Reagan tornou-se Presidente alegando que o Estado, o governo, não eram a solução mas o problema. Bush pai, embora reluctante, e Bil Clinton, embora Democrata, não conseguiram resistir à vaga. Que com George W. Bush cresceu, cresceu e... rebentou com a força arrasadora dum tsunami, insuflado pelo sopro furioso do Katrina. Desde 2001, só as despesas militares não sofreram cortes no orçamento desta América, com um Presidente que passou a vida a salivar pela guerra, a invocar Deus e a desdenhar do Estado. Mas o Katrina, o mais previsto e anunciado dos desastres naturais na história americana, expôs os limites e consequências catastróficas do «conservadorismo com compaixão» dos defensores do «small government»: depois de décadas a desmantelar o Estado, não admira que ele não funcionasse quando mais era preciso.
O incompetente Bush desviou agulhas do Afeganistão sem acabar o trabalho e apanhar Osama Bin Laden nem Al-Zawahari, que atacaram no 11 de Setembro. Mas quer que os americanos vivam na fantasia de que tudo está no bom caminho no Iraque e no Afeganistão, de que espalhar democracia é encenar eleições-farsa (como no Egipto, onde o povo nem se maçou a ir votar), ou legitimar eleições falseadas (como na Etiópia, apesar do povo ter votado massivamente pela democracia, contra a ditadura). Uma fantasia criminosa onde cortes nos impostos são receita de governação, Estado de direito e direito internacional são para mandar às urtigas, direitos humanos um luxo só para ricos, o aquecimento global uma abstracção, a pobreza e a miséria uma fatalidade.
Mas o Katrina e a resposta calamitosa do Governo de George W. Bush mudaram tudo.
Na América, onde as raízes da liberdade e da democracia vão mais fundo do que a propaganda da oligarquia no poder, o Congresso começa a agitar-se para avaliar os colossais falhanços desta Administração. Sinal de que o povo, indubitavelmente, vai exigir mais e melhor Governo, mais e melhor Estado, das Administrações seguintes.
E no Mundo, a América que tudo sabe melhor, a América que prega moral e dita soluções (à bomba se for preciso), a América que põe e dispõe sem cuidar dos sentimentos e interesses dos outros, tem os dias contados. Porque o Katrina está a mudar a forma como a própria América se olha a si mesma e a ideologia politica de dominação mundial dos falcões no poder. O Katrina pôs a nu, para americanos e todo o mundo (terroristas incluidos), que os EUA, sob a Administração incompetente de Bush, aumentaram a vulnerabilidade ao terrorismo: se não estão preparados para evitar um desastre anunciado e socorrer as populações afectadas, como lidarão com mais ataques traiçoeiros como o 11/9 ? O Katrina também pôs a nu, à vista dos americanos e de todo o mundo, diferenças abismais de riqueza, de classe, de cor de pele, de protecção, de acesso que envergonham a América e a sua magnífica história de luta pelos direitos e liberdades cívicas e pela igualdade dos cidadãos. O sentimento de superioridade que os EUA exibiam na política externa, e que tantos pelo mundo fora acatavam servil e acríticamente, ficou esfrangalhado pelo Katrina.
Como escrevia há dias Tom Friedman no NYT «o Katrina destruiu New Orleans, mas terá ajudado a restaurar a América». Ao pedir «ajuda, amor e compaixão» para as vítimas do Katrina, Bush profetizou «out of the darkness will come some light». Já vejo: as pombinhas do Katrina estão a afogar os falcões. Talvez o mundo dos netos ainda possa salvar-se.