11 de Setembro. Passaram quatro anos da noite, em Jacarta, em que emudeci de horror, indignação, fúria, desespero, diante de um televisor, vendo gente atirar-se das torres do WTC, que eu tratara por tu das minhas janelas em Nova Iorque, e assistindo em directo ao desmoronamento das torres. Rebentaram depois mais guerras insanas, mais prédios, comboios e autocarros cheios de cidadãos inocentes, espalharam-se ódios e, como não podia deixar de ser, proliferaram terroristas. Nasceram netos, também, para vincar mais a preocupação pelo mundo que lhes deixamos e a responsabilidade de tudo tentar para travar a loucura de quem desgoverna, governando, de quem empurra para o abismo, supostamente liderando.
Hoje, 11 de Setembro de 2005, é «Ground Zero» em New Orleans, na Louisiana afogada em água podre, viscosa, envenenada. Para além da destruição e do sofrimento, tal como o 11 de Setembro de 2001, também o furacão Katrina não pode deixar de ter consequências profundas para a América e para o Mundo.
Emmanuel Todd em 2000 já antecipava no «Après l'Empire» o «imperial overstreching» dos EUA. Mas o Katrina é que veio realmente mostrar a verdadeira face da América governada pelos «falcões» neo-conservadores e mudar o modo como o resto do mundo olha para a única, mas subitamente vulnerável hiperpotência, com uma Administração alheada dos interesses dos seus cidadãos e flagrantemente incompetente.
Reagan tornou-se Presidente alegando que o Estado, o governo, não eram a solução mas o problema. Bush pai, embora reluctante, e Bil Clinton, embora Democrata, não conseguiram resistir à vaga. Que com George W. Bush cresceu, cresceu e... rebentou com a força arrasadora dum tsunami, insuflado pelo sopro furioso do Katrina. Desde 2001, só as despesas militares não sofreram cortes no orçamento desta América, com um Presidente que passou a vida a salivar pela guerra, a invocar Deus e a desdenhar do Estado. Mas o Katrina, o mais previsto e anunciado dos desastres naturais na história americana, expôs os limites e consequências catastróficas do «conservadorismo com compaixão» dos defensores do «small government»: depois de décadas a desmantelar o Estado, não admira que ele não funcionasse quando mais era preciso.
O incompetente Bush desviou agulhas do Afeganistão sem acabar o trabalho e apanhar Osama Bin Laden nem Al-Zawahari, que atacaram no 11 de Setembro. Mas quer que os americanos vivam na fantasia de que tudo está no bom caminho no Iraque e no Afeganistão, de que espalhar democracia é encenar eleições-farsa (como no Egipto, onde o povo nem se maçou a ir votar), ou legitimar eleições falseadas (como na Etiópia, apesar do povo ter votado massivamente pela democracia, contra a ditadura). Uma fantasia criminosa onde cortes nos impostos são receita de governação, Estado de direito e direito internacional são para mandar às urtigas, direitos humanos um luxo só para ricos, o aquecimento global uma abstracção, a pobreza e a miséria uma fatalidade.
Mas o Katrina e a resposta calamitosa do Governo de George W. Bush mudaram tudo.
Na América, onde as raízes da liberdade e da democracia vão mais fundo do que a propaganda da oligarquia no poder, o Congresso começa a agitar-se para avaliar os colossais falhanços desta Administração. Sinal de que o povo, indubitavelmente, vai exigir mais e melhor Governo, mais e melhor Estado, das Administrações seguintes.
E no Mundo, a América que tudo sabe melhor, a América que prega moral e dita soluções (à bomba se for preciso), a América que põe e dispõe sem cuidar dos sentimentos e interesses dos outros, tem os dias contados. Porque o Katrina está a mudar a forma como a própria América se olha a si mesma e a ideologia politica de dominação mundial dos falcões no poder. O Katrina pôs a nu, para americanos e todo o mundo (terroristas incluidos), que os EUA, sob a Administração incompetente de Bush, aumentaram a vulnerabilidade ao terrorismo: se não estão preparados para evitar um desastre anunciado e socorrer as populações afectadas, como lidarão com mais ataques traiçoeiros como o 11/9 ? O Katrina também pôs a nu, à vista dos americanos e de todo o mundo, diferenças abismais de riqueza, de classe, de cor de pele, de protecção, de acesso que envergonham a América e a sua magnífica história de luta pelos direitos e liberdades cívicas e pela igualdade dos cidadãos. O sentimento de superioridade que os EUA exibiam na política externa, e que tantos pelo mundo fora acatavam servil e acríticamente, ficou esfrangalhado pelo Katrina.
Como escrevia há dias Tom Friedman no NYT «o Katrina destruiu New Orleans, mas terá ajudado a restaurar a América». Ao pedir «ajuda, amor e compaixão» para as vítimas do Katrina, Bush profetizou «out of the darkness will come some light». Já vejo: as pombinhas do Katrina estão a afogar os falcões. Talvez o mundo dos netos ainda possa salvar-se.