sábado, 2 de janeiro de 2010

Selamat Jalan, Gus Dur!


Abdurrahman Wahid, ex-Presidente indonésio, morreu.
A noticia chegou-me seca, curta, despojada de detalhes, pela TV.
Por uma locutora que, de certeza, não fazia ideia nenhuma de quem ele era, de quem ele fora, como fora importante para Timor Leste, para a democracia na Indonésia, para Portugal, para mim.
Por uma locutora que tropeçava no nome muçulmano, como nenhum locutor tropeçaria há 10 anos atrás - quem então não sabia quem ele era, quem não conhecia o dirigente islâmico que defrontara a ditadura suhartista, que ousara ir visitar Xanana à prisão, quem não sabia que ele se tornara Presidente em resultado das primeiras eleições livres na Indonésia em Junho de 1999, quem não preferia chamar-lhe mais facilmente, mesmo sem saber que também era um vocativo afectuoso, mais simplesmente "Gus Dur" (Irmão Dur)? Por uma locutora que não sabia que ele tinha vindo a Portugal em 2004, sem preconceitos de qualquer espécie, consultar o Prof. João Lobo Antunes, para ver se conseguia o impossível - recuperar a visão.
Morreu dia 30 de Dezembro de 2009, dois dias depois de fazer 10 anos que Portugal e a Indonésia restabeleceram relações.
Ele foi, sintomaticamente, o primeiro líder político e religioso a receber-me, quando eu cheguei a Jacarta em Janeiro de 1999. Era então líder da maior organização muçulmana do mundo, a Nadhatul Ulama, com mais de 40 milhões de fieis. Era firmemente anti-sectário, era ecuménico, era militante activo do diálogo entre religiões, denunciava o wahabbismo como ideologia perversa e reaccionária, inspiradora de extremistas e o regime saudita como exportador/financiador do terrorismo.
Ele foi quem fez acelerar o processo de reconsideração pelo parlamento indonésio da anexação de Timor Leste, depois do referendo, em Outubro de 1999, estava a INTERFET a instalar-se ainda.
Ele foi quem se empenhou politicamente no processo de restabelecimento das relações diplomáticas com Portugal, o que viria a concretizar-se a 28 de Dezembro de 1999.
Ele foi o Presidente da República da Indonésia que recebeu de mim credenciais como primeira embaixadora de Portugal em Jacarta, a 7 de Julho de 2000. (vd. foto aqui)
Falavamos de tudo, além de Timor- Leste, claro. Mas sobretudo da Indonésia - dos conflitos nas Molucas, no Poso, na Papua, no Aceh - sem complexos, sem rodeios, sem paninhos quentes. "O quê? os militares não vos querem deixar entrar em Banda Aceh? Pois vão, por favor vão mesmo e depois venham a correr contar-me o que é que acharam!" Fomos, comigo presidindo a uma delegação da UE, em Maio de 2000, encontrando o Aceh a ferro e fogo. E a seguir corremos a contar-lhe e deparamos com uma abertura premonitória da que o tsunami, anos mais tarde, dramaticamente forçaria os militares a engolir...
Ele tinha os olhos semi-cerrados, mas via muito mais que quase todos os de olhos bem abertos. Ele era cego, mas tinha visão. Cometeu erros, claro - quem os não comete?
Mas era um homem bom, um democrata, um humanista, um homem de diálogo, um homem corajoso, um homem sem medo das rupturas. Ah, e tinha um humor danado!
Eu tinha-lhe admiração e afecto. Fico-me com eles, daqui por diante a engrossar em saudades.
Selamat Jalan, Gus Dur!